COTIDIANO INFORMACIONAL


COTIDIANO E MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO: ASPECTOS SOCIAIS E EDUCATIVOS DA PRÁTICA PROFISSIONAL DO BIBLIOTECÁRIO

Em um livro curto mas rico, intitulado “Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras”, Rubem Alves discute, de forma didática e atraente, a relação entre ciência e senso comum, apontando a importância deste para o desenvolvimento do saber científico. Sem o senso comum a ciência, possivelmente, não existiria. Segundo Rubem Alves, “aquilo que outros homens, em outras épocas, consideraram ciência sempre parece ridículo séculos depois. Isso acontecerá, também, com nossa ciência”. Modelos válidos hoje podem ser superados amanhã. Assim, as respostas que temos a nossas questões teórico-metodológicas são temporárias, sempre à espera de contestação ou banalização. Nas palavras de Tomas Kuhn, podemos chamar esses modelos também de paradigmas.

 

Um aspecto interessante disso é que, por meio da ideia de modelo, a ciência pode ser entendida como uma representação, em escala muito reduzida, claro, da realidade. No entanto, quero deixar um alerta ao leitor, qual seja, não busco afirmar que se trata de um retrato fiel do real (nem poderia fazer isso ao me apoiar em Rubem Alves e nos demais autores citados adiante), mas, sim, distorcido, conforme o viés do pesquisador. Quer dizer, um paradigma adotado e defendido a partir de suas preferências intelectuais, história de vida, experiências sóciointerativas e por ai vai. Nesse sentido, como pontua Kuhn, “a ciência não é um sistema de declarações certas e bem estabelecidas; tampouco um sistema que avança para um estado final”. Seu movimento é espiralado e suas verdades hipotéticas.

 

Ao abordar os paradigmas da Biblioteconomia e Ciência da Informação, Armando Malheiro defende o emprego do termo “Documentação/ Informação” para se referir a uma área que, apesar do caráter interdisciplinar, pode ser pensada como autônoma, ou seja, com objeto e pressupostos teórico-metodológicos circunscritos ao seu domínio. Nesse sentido, o autor aponta a existência de dois modelos dominantes, denominados como “custodial” e “pós-custodial”. O primeiro é caracterizado por uma atuação profissional voltada às bibliotecas, arquivos e museus, preocupada mais com a conservação, guarda e custódia do documento, sendo o suporte e o conteúdo elementos indissociáveis, destituída, ainda, de um interesse investigativo e crítico. Já o segundo, por sua vez, tem como traço principal a defesa da necessidade de se entender a informação enquanto fenômeno social, o que significa, nas palavras de Armando Malheiro, um deslocamento da “lógica instrumental” para uma “lógica científico-compreensiva”.

 

A transição de um paradigma para outro não ocorre de forma pacífica, tampouco direta e objetiva, mas, pelo contrário, é gradual e marcada por tensões e disputas várias. Assim, enquanto o paradigma “custodial” tenha se desenvolvido amparado na formação profissional, o paradigma “pós-custodial” valoriza os aspectos simbólicos, sociais e culturais relacionados aos indivíduos e aos contextos no qual estes estão inseridos, afetando diretamente a produção, o consumo e a disseminação da informação, ou seja, estão envoltas nisso nuances individuais e coletivas relacionadas à assimilação e apropriação da informação.

 

Por esse motivo, creio que lidar com a ideia de informação enquanto “fenômeno social” exige aprofundar outras questões para além do reconhecimento da inserção de uma “lógica científico-compreensiva” nos quadros epistêmicos da Biblioteconomia e da Ciência da Informação. Isto porque devemos considerar também a necessidade de um deslocamento das competências e habilidades necessárias à atuação profissional, pois pouco adianta a fundação de “novos saberes” se não há, com a mesma intensidade, o desenvolvimento de “novos fazeres”.

 

Ser um “profissional da informação” (por mais críticas que a expressão possa receber e estou ciente disso, utilizando-a apenas por falta de outra melhor para manter a espontaneidade deste texto) significa antes de tudo ser um profissional preocupado não apenas em acompanhar as transformações tecnológicas do seu tempo, mas que deve estar atento a questões maiores, de cunho social, político e econômico, uma vez que todas essas esferas se entrelaçam intimamente com a informação na contemporaneidade.

 

Segundo aponta Oswaldo Francisco de Almeida Júnior, a mediação da informação constitui uma das principais atividades do bibliotecário, perpassando diversos campos de sua prática profissional, tais como o serviço de referência, a ação cultural e o processamento técnico, dentre outros. Na visão do autor, a mediação da informação implica em uma ação de interferência por parte do bibliotecário, seja essa intervenção “direta ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural; individual ou coletiva”, a qual pode afetar significativamente a relação do indivíduo com a informação.

 

A neutralidade da prática profissional do bibliotecário, assim como a informação enquanto algo condicionado a um registro num suporte físico foram duas ideias defendidas durante bastante tempo na Biblioteconomia. A partir de Oswaldo Francisco de Almeida Júnior, Carlos Alberto Ávila Araújo e vários outros autores, tem se apresentado à área um paradigma que sinaliza, de alguma forma, uma ruptura epistemológica importante, a qual pode ser resumida por meio das duas sentenças a seguir: a primeira diz respeito à ideia de que a mediação não é neutra, tampouco imparcial; por sua vez, a segunda defende que a informação não tem vida própria, nem existência exterior, mas, ao contrário, depende dos contextos sociais, culturais, políticos e econômicos nos quais os indivíduos estão inseridos para ser assimilada e apropriada.

 

Nesse sentido, deve o bibliotecário desempenhar o seu papel de modo cada vez mais compromissado com as pessoas ou grupos por ele assistidos, cabendo-lhe, ainda, ter discernimento sobre os efeitos possíveis de sua interferência por meio da mediação da informação e um cuidado constante em respeitar as idiossincrasias observadas.

 

Dito isso, deve o leitor estar a se perguntar sobre qual a relação da mediação da informação com o cotidiano. Explico. Nem sempre a atividade do bibliotecário está dirigida para “usuários profissionais”, tais como pesquisadores e cientistas de determinada área – como demonstra Nice Figueiredo através de seus textos sobre estudos de usuários. Ao contrário, busco apontar aqui que há situações em que a prática profissional pode ser dirigida ao “homem ordinário” (como diz Certeau) e, desse modo, ultrapassar as paredes das instituições e bibliotecas especializadas, por exemplo.

 

Assim, é pensando em contextos não profissionais (ou nonwork contexts, como se refere Savolainen) que tento apontar a possibilidade de se aproximar a mediação da informação ao cotidiano dos indivíduos. Como exemplo disso, vale mencionar o caso das bibliotecas comunitárias em municípios do nordeste brasileiro. Na visão de Lídia Eugênia Cavalcante, estas têm como missão, em muitos casos, suprir a ausência de bibliotecas governamentais ou de políticas públicas em regiões consideradas periféricas – seja em termos econômicos ou geográficos. Por meio das bibliotecas comunitárias, temas como democratização, inclusão e acesso à informação vêm à tona, podendo ser discutidos coletivamente.

 

Nessa perspectiva, cabe destacar o papel de uma mediação amparada não apenas em registros físicos, mas enquanto possibilidade de compreensão da experiência dos indivíduos quando motivados a buscarem determinada informação. Experiências estas constituídas em diferentes situações e que possibilitam a atribuição de sentidos variados à informação. Quer dizer, os sentidos atribuídos à informação pelos indivíduos são construídos com base em seus próprios cotidianos, logo, segundo as dinâmicas socioculturais dos espaços que habitam e interagem. Isto permite discutir como as pessoas acessam e utilizam as fontes e canais de informação de modo a atender suas necessidades.

 

Necessidade, muito provavelmente, que venha a adquirir uma conotação maior, uma vez que pode estar associada ao “indispensável”, segundo o dicionário. Todavia, não almejo que o “indispensável” seja entendido pelo leitor como algo obrigatório (tal como o porte de um documento de identificação oficial com foto para o embarque num voo ou uma carteira de habilitação para dirigir um carro, por exemplo), mas, sim, enquanto essencial, portanto, ligado à vida. Acredito que uma informação pode ser tida como “indispensável” – ou essencial, melhor dizendo – a partir do momento em que sua assimilação e apropriação têm o poder de levar o indivíduo, ou um grupo, à reflexão crítica acerca de sua própria realidade.

 

Proporcionar empoderamento às pessoas através da mediação da informação, quem sabe, possa se constituir como atualização do papel social e educativo do bibliotecário. Ao considerar o cotidiano, o bibliotecário pode desempenhar atividades de forma cada vez mais abrangente e integrada a contextos particulares de produção, disseminação e uso da informação, vindo a reforçar os aspectos sociais de sua atuação profissional. Por seu turno, através da mediação, a dimensão educativa da Biblioteconomia é recobrada, pois, por meio dela, os indivíduos podem ser conduzidos à conquista de relativa autonomia no tocante à avaliação da relevância dos canais e fontes de informação que têm acesso, tornando possível a formação de uma consciência crítica acerca do lugar que ocupam no mundo. Desse modo, podem se posicionar sobre acontecimentos que os rodeiam e que os afetam, de forma clara ou disfarçada, em âmbito regional ou nacional.


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JEFFERSON VERAS NUNES

Mestre em Sociologia pela UFC, doutor em Ciência da Informação pela UNESP e professor do Departamento de Ciência da Informação da UFC