AO PÉ DA ESTANTE


AO PÉ DA ESTANTE... À SICILIANA


Existem autores policiais que a gente lê uma vez e acabou-se. Outros, a gente lê mais de uma vez, de tempos em tempos, depois que esqueceu a trama – mais importante do que descobrir o assassino em si. E há aqueles que a gente pode ler, ao longo dos anos, dez, vinte, trinta vezes com o mesmo prazer.

É o caso do siciliano Andrea Camilleri, que além de suas novelas policiais possui uma vasta obra da qual constam outros romances, sátiras, dramaturgia, e roteiros. Produziu seriados para a TV, e também trabalha como diretor teatral. Camilleri apresentou peças suas e alheias em teatros ao redor do mundo, inclusive no Rio de Janeiro. Nasceu em 1925, em Porto Empedocle, que espelha a fictícia Vigàta, onde vive seu impagável Montalbano, nosso foco de hoje.

Ao redor desse atilado detetive cinquentão, muito humano, dono de uma sabedoria de vida contagiante e de uma ética peculiar, gravitam seus subordinados, um grupo coeso, divertido, cheio de "jogo de cintura" e de uma fidelidade canina ao chefe, embora um ou outro o exaspere e até goste de competir com ele. Nem sempre acertam em cheio, mas, quando a trama esquenta, ninguém pode culpá-los por falta de empenho e dedicação. E, por falar em exasperação, vale citar não só o personagem do médico legista, impagável pelo contraponto com Montalbano, como também a amada Lívia, eterna e complicada namorada do detetive. Sim, os dois se amam mas quase nunca conseguem entender-se satisfatoriamente.

Em português encontramos, protagonizados pelo envolvente Montalbano, 14 títulos e mais uma obra em parceria com Carlo Lucarelli (outro escritor policial italiano). Esta última, intitulada Água na boca, embora não tão fascinante quanto as demais, atrai o leitor justamente pelo "bate-bola" ágil dessa parceria quase impossível.

É difícil escolher alguns dentre os 14 títulos; portanto, levarei em conta o gosto pessoal, começando por indicar O ladrão de merendas, história que além dos ingredientes já consagrados pelos romances policiais traz uma dose extra de humanidade, que nos enleva e comove sem exageros. A lua de papel também se destaca, por muito engraçada e por agudas farpas políticas, parecendo até um país nosso conhecido… E a terceira indicação vai para Guinada na vida, de 2003, trama na qual Camilleri já tratava do problema dos imigrantes e do tráfico de seres humanos, muito antes que os países da União Européia tomassem conhecimento do assunto. Enfim, cada uma das histórias tem seu apelo próprio, inclusive as dos livros de contos.

Quanto ao estilo, Camilleri é único em sua fluidez, irreverência e liberdade criativa; um texto sempre inteligente e instigante, sem dúvida alguma! Como exemplo, aí vai o precioso adjetivo, cunhado por Montalbano para um dos dois canais de TV da cidade, sempre aliado ao governo do momento: filogovernamental! Qualquer semelhança com alguns partidos políticos não é mera coincidência... E, se você não gosta de palavrões (como Sarasvati), saiba que o autor costuma usá-los na hora certa, sem chocar o leitor. Acredite, todas as irreverências de sua narrativa se encaixam à perfeição nos enredos, e nos divertem a valer! Parodiando Montalbano, se houver interesse pela “vida, paixão e milagres” de Andrea Camilleri, há um site próprio na internet, em italiano, e algumas informações em português.


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SARASVATI

Nascida e criada na Índia, estudou na Universidade de Madras, morou em Goa (onde aprendeu português) e viajou pelo mundo em busca de autores e compositores diferentes. Apaixonada pela música brasileira, fixou-se em São Paulo, pela convivência pacífica entre religiões as mais diversas.