O INSÓLITO ENCONTRO COM O EU
A literatura é a própria essência humana. É uma representação das idéias, sentimentos, sonhos, angústias, enfim, da própria vida. Em cada época, o homem expressa seus sentimentos de forma diferente, ainda que recorra, quase sempre, aos mesmos sentimentos.
Na literatura de língua portuguesa, em especial no Brasil e em Portugal, encontramos poemas cujo eu-lírico questiona-se, "olha" para as suas contradições, estranhando-as ou não.
Um poeta do século XVI tem alguma correspondência temática com um poeta do século XX? A poesia está sempre recorrendo a temáticas já desenvolvidas, pois o sentido de existência é inerente a todo ser humano em todas as épocas e não é raro encontrarmos textos "conversando" um com o outro sobre o mesmo assunto, mas com cenário e épocas diferentes. Vamos perceber isso nos trechos poéticos de Francisco Sá de Miranda, Mário de Sá-Carneiro, Ana Cristina Cesar, Ferreira Gullar e Arnaldo Antunes.
No século XVI, o poeta português Sá de Miranda escrevia:
Comigo me desavim
Sou posto
Todo em perigo
Não posso ficar comigo
Não posso fugir de mim
Naquela época, predominava a visão
antropocêntrica, prenunciava-se o Renascimento, período de valorização do homem
e de seus conflitos, da busca de si mesmo, de entender-se, de confrontar o que
sente com o mundo circundante. Mas seria uma temática própria daquele período?
Se caminharmos mais alguns séculos adiante obteremos uma resposta.
No
início do século XX, por exemplo, ainda na literatura portuguesa, encontraremos
o poema Dispersão do poeta português Mário de
Sá-Carneiro:
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim
Ainda permanece a fala de um "eu" em busca de si
mesmo, estranhando-se, disperso, desejando resgatar a si próprio. Algumas
décadas depois, final dos anos 60, no Brasil, Ana Cristina Cesar escrevia no
poema Água Virgem:
Perdi-me no entrelaçar-se de malhas
Entreguei-me no manchar-se de sonhos.
Marquei-me no soluçar de perdas.
Os textos de Ana e de Sá-Carneiro utilizam-se de
expressões como "labirinto" e "malha", que sugerem o entrançado simbólico do
caminho que leva ao próprio "eu".
Mais adiante, a poesia de Ana Cristina
encontra eco em Traduzir-se, final da década de 70, de Ferreira Gullar:
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
No poema, Ferreira Gullar, numa construção
estruturada em antíteses, reitera o questionamento, o desenvolvimento da idéia
de conflito do "eu" com ele mesmo. Posteriormente, no final década de 90,
Arnaldo Antunes, escreveu o poema Sem Com:
sem
mimando
com
igo
sigo
sem
com
ando
Em Sem Com, o título já é desencadeador
do caráter conflituoso, dilemático de estar sem e com o "eu" ao mesmo tempo.
Somos levados a um ritmo de caminhada quer seja pelo compasso melódico ou pela
disposição gráfica das palavras.
Parece habitual o encontro com o eu, no
entanto, esse insólito encontro provoca tensão, incomoda, mas ao mesmo tempo
traz uma visão de nossas precariedades, de nossa humanidade. Ou como diria
Ferreira Gullar em Traduzir-se:
Traduzir uma parte
Na outra parte
__que é uma questão
de vida ou morte __
será arte?