PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: BIBLIOTECÁRIOS DE VIZINHANÇA

Uma denominação corrente no Brasil para biblioteca de vizinhança é “biblioteca comunitária”. Biblioteca comunitária é, há muito tempo, o lugar que a população abandonada pelo Estado e pelos bibliotecários formados teima criar e manter economicamente como forma de dar conta da necessária superação da grande  inacessibilidade aos espaços bibliotecários públicos criados e mantidos pelo Estado. Essas bibliotecas públicas estatais amplamente negadas ao povo seriam parte da contrapartida aos impostos recolhidos a todo e qualquer título: renda, circulação de mercadorias e serviços, predial e territorial, etc.

 

As bibliotecas comunitárias são constituídas a partir do esforço de pessoas individuais, que mobilizam um coletivo, em torno da noção de que livro e leitura são recursos básicos para o desenvolvimento dos indivíduos e dos grupos. Essa noção ou ideia constitui parte de uma visão de mundo que é tomada como fundo ideológico  profissional pelos bibliotecários formados que, no entanto, por essa razão, perdem parte da condição de serem merecedores do reconhecimento dos criadores ou responsáveis de/por bibliotecas comunitárias.

 

Pode compreender-se melhor as circunstâncias da distância que há entre os bibliotecários formados e os leigos que criam ou respondem pelas bibliotecas comunitárias, quando se lê o livro de  Ana Claudia Perpétuo de Oliveira da Silva É preciso estar atento: a ética no pensamento expresso dos líderes de bibliotecas comunitárias”, 2014. Inicialmente, apresentado como dissertação de mestrado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação  da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, no ano de 2011, o livro mantém como parte integrante de seu conteúdo, por evidente valor, as entrevistas que a autora realizou com lideres de bibliotecas comunitárias em diversas regiões do Brasil. Além do mérito em si, representado por sua aprovação elogiada como produção acadêmico-científica no âmbito da UFSC, a dissertação de Ana Cláudia foi premiada em 2012 pela ANCIB como a melhor dissertação em Ciência da Informação produzida no ano de 2011 no Brasil.

 

E o que o texto contém? Ele traz a expressão de um estar no mundo, de viver um mundo de pessoas que são lideranças na criação de bibliotecas comunitárias neste país, movidas pelo desejo de atenuar a miséria da biblioteca pública e de recusar o fato de que o fortalecimento da biblioteca pública não pode se dar pela negação ampla e acentuada pelos bibliotecários públicos de seus compromissos éticos: dignificação do seu papel profissional; responsabilidade social; respeito à cidadania; etc.

 

Então, no livro está expressa a percepção de outros bibliotecários: leigos, politizados com as demandas sociais, articulados com uma sociabilidade de vizinhança não praticada na mesma medida pelos bibliotecários formados, etc. Aparentemente, creio que se pode imaginar estarem os bibliotecários formados satisfeitos em se identificarem como funções: são papéis sociais, são funcionários, são instrumentos muito acima de serem pessoas humanas capazes de sofrer com a desigualdade vivida pelo povo no que toca ao acesso ao livro e à leitura.

 

Causa impressão, que o significativo número de bibliotecas comunitárias existentes no Brasil não tenha sido suficiente para dar origem à denominação “bibliotecários comunitários” para as pessoas que lá atuam. Por que se dá isso? Por que o nome bibliotecário é depreciativo, uma vez que os bibliotecários formados em Biblioteconomia querem ser identificados não mais pelo nome bibliotecário, mas pela vazia designação de Profissional da Informação? Não se sabe; essa pergunta não foi feita pela autora da dissertação, hoje livro recentemente editado em formato impresso e colocado à disposição no mercado.

 

Mas mesmo sem consultar esses bibliotecários comunitários, penso que lhes caberia com carinho e como homenagem chamá-los de “bibliotecário de vizinhança”. Pois, para mim bibliotecário de vizinhança é a pessoa – homem ou mulher, jovem ou velho, analfabeto ou doutor – que se dedica a essa lida de tornar acessível o livro e a leitura, e atividades conexas, porque gosta e não porque é um funcionário ou empregado. O bibliotecário de vizinhança, em geral, tem uma noção muito clara de sua contribuição social, de sua responsabilidade pública, assim como tem uma percepção bem definida sobre o que é a biblioteca pública estatal no Brasil das décadas recentes e de hoje. Para ilustrar o que se pode encontrar no livro de Ana Cláudia, em seus anexos, destaco da página 180 do texto da dissertação, mas que se encontra no livro impresso, as perguntas e respostas fornecidas por uma das pessoas entrevistadas, que não foi das que percebeu a biblioteca pública estatal da forma mais negativa.

 

Pesquisadora: Fale o que pensa das bibliotecas públicas atualmente.

A.: Atualmente, eu não tenho ido às bibliotecas públicas, mas já tive relatos de que eles não aceita, aceita, mas do jeito deles, as pessoas que não tão bem vestido, tão de chinelo, não são muito aceita nessas bibliotecas. Eu acho que isso aí teria que acabar, é publica, é pra todo mundo, já diz, pública, público é pra todo mundo não interessa se você tá de chinelo, se você tá de bermuda ou se você tá de terno. Então eu acho que eles precisa dá uma reavaliada nesse sentido assim.

 

Pesquisadora: Fale sobre suas motivações para a criação da Biblioteca Comunitária

A.: A minha motivação foi o ex-presidente da Cooperativa. Que o sonho dele era ter uma biblioteca. Ele batia naquela tecla. E ele não sabia ler. Quando falou da biblioteca ele falou, “não, eu vou aprender a ler”, e realmente ele aprendeu a ler, hoje em dia ele lê muito bem, pega os livros, conversa... não tem aquele estudo, mas o pouco que ele aprendeu ele sai aí fora e fala muito bem. Ele me incentivou muito a querer ficar aqui, a fazer o curso, então hoje em dia eu agradeço a ele.

 

Pesquisadora: Fale sobre os serviços e benefícios que a biblioteca que lidera traz para a comunidade

A.: A biblioteca oferece a leitura para aqueles que não têm acesso à biblioteca pública e de vez em quando a gente faz uns eventos, evento cultural, chama contador história pra contar umas história aí pro povo, fazer eles ri, aqueles contador de anedota, piadas, pra intercalar. Faz tempo que a gente não faz isso mas precisamos voltar na ativa, porque isso é muito bom, porque esse pessoal que trabalha ali, aquele trabalho é muito pesado, é muito estressante. Penso que eles tem que ter um dia pra parar, sentar, relaxar, acho que não só eles, não só eles como acho que o mundo todo tá assim, então, acho que tem que ter um tempo, parar... E a atividade que a gente faz aqui é uma festa, uma vez por mês, que é os aniversariante do mês, do outro lado de lá da cooperativa e aí a gente faz aqui, fora da Biblioteca, eles tem acesso a ligar uma televisão, assistir um vídeo, toda comunidade participa, a gente faz divulgação pela Internet e a gente tem muitos voluntários. A gente já tem uns cadastro tal, então a gente faz uns papelzinho, uns panfletinho e sai entregando aí na comunidade.

 

 

À primeira vista, parece que as respostas provêm da reflexão de uma pessoa pouco alfabetizada e com pouca escolarização. De fato, sim. Dentre os lideres na criação de bibliotecas comunitárias entrevistados por Ana Cláudia se encontram de  doutores de título, com funções acadêmicas universitárias a pessoas que sabem ler, mas não sabem escrever. Pessoas que advém de famílias de classe social média a pessoas que viveram em ambientes sociais de extrema carência material.

 

O livro de Ana Cláudia é, portanto, revelador de que há uma enorme quantidade de pessoas neste Brasil para as quais a existência da biblioteca pública estatal só se apresenta como monumento, como espaço para emprego de bibliotecários formados, que cuidam de forjar todos os recursos burocráticos possíveis para a garantia do afastamento das pessoas mais simples e pobres do usufruto de um bem que é coletivo. Nesse sentido, parece cada vez mais discutível que as questões essenciais para o reconhecimento dos bibliotecários formados pela sociedade se resolvam com uma Lei da Biblioteca como querem as lideranças profissionais bibliotecárias que se reuniram no Senado Federal com o parlamentar Cristovão Buarque, no último dia 10 de abril. Os indícios mais fortes do que está a acontecer apontam que fundamentalmente há menos aspectos legais ou de falta de leis como problema a resolver nesta questão e há muito de falta de boas práticas profissionais sustentadas em bons valores humanos. Enfim, parece haver sérios problemas éticos.

 

Da mesma forma que os bibliotecários formados têm uma ideologia sobre o acesso ao livro e à leitura, os bibliotecários de vizinhança, na concepção que se dá a essa expressão neste texto, também a tem. Entretanto, é provável, que os valores que os movem sejam muito distintos e isso exige que a ambos se dê espaço para participarem nesse amplo debate nacional. Sem isso, sem essa conjunção de esforços no exame deste tão amplo mundo vivido de leituras e bibliotecas, o bibliotecário formado, cada vez mais desejoso de ser identificado com a denominação vazia Profissional da Informação será percebido, no caso das bibliotecas públicas estatais, como um mero burocrata insensível aos desejos, interesses e necessidades reais das pessoas que habitam os mais de 5.500 municípios deste país. E isso, para além de lamentável é a continuação de uma tragédia, que somente se agravou continuamente a partir dos anos da década de 1960.

 


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB