PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO COMO COLONIZAÇÃO DA CIÊNCIA DA BIBLIOTECA OU DE COMO O BIBLIOTECÁRIO PERDE SUA OBRA HISTÓRICA.

Em mais de uma oportunidade comentei nesta coluna sobre a questão da identidade profissional. Esse objeto de reflexão continua a representar um tema relevante. A literatura filosófica, psicológica, sociológica, étnica, etc. não tem demonstrado que os autores desses campos tenham arguido boas razões para considerar o tema esgotado. Certamente, os estudiosos das várias profissões e das profissões como objeto científico também não teriam razões para desconsiderar a necessidade de se continuar a tratar dessa questão. Mas a ela também se pode associar a noção de foco.

 

Olhando de forma mais estrita, se pode considerar que a responsabilidade pelo entendimento do que seja o foco de uma profissão ou carreira não estaria a cargo somente de teóricos, sejam eles filósofos, psicólogos ou sociólogos. O primeiro lugar onde o foco de uma profissão deve ser tratado, cuidado como estruturante, é no grupo profissional respectivo, em uma situação que antecede ao ambiente acadêmico que aquela profissão constituiu.

 

Se vista como uma ação em cadeia, cada profissão apresenta em seu desenvolvimento algumas dessas características: 1) teve início como uma mera ocupação laica realizada de forma aleatória, para suprir uma carência eventual de um indivíduo ou grupo; 2) evoluiu para uma ocupação em tempo parcial, por não requerer a aplicação de todo o tempo disponível de um “sabedor”; 3) caminhou para uma ocupação a tempo inteiro, já exigindo perícia e formação de um saber prático, com técnicas primárias a requerer o estabelecimento de padrões operacionais; 4) passou a exigir uma sistematização de conhecimento e a forja de manuais ou tratados contendo uma teoria da prática como meio de formação de coletivos de sabedores; 5) levou à criação de Associações, Clubes ou Colégios profissionais como caminho à transmissão e troca dos conhecimentos já formados visando ao contínuo aperfeiçoamento; 6) favoreceu a criação de revistas e periódicos para complementar encontros e debates profissionais e para fomentar a educação contínua; 7) estabeleceu canais próprios de formação escolar especializada em nível pré-universitário; 8) conquistou o espaço acadêmico universitário para ampliar a densidade da formação de novos membros para a profissão; 9) elevou o ambiente universitário conquistado à condição de formar conhecimentos “especulativos”, forjando teoria a partir de processo de investigação e racionalização, abrindo-se à constituição da Epistemologia do campo mais abrangente e com maior potencial de explicação para os fenômenos com que lidava.

 

Essa trajetória é a verdadeira história que os bibliotecários fizeram; que os médicos fizeram; que os enfermeiros; economistas; advogados, etc. fizeram.  Ao fazerem essa trajetória os bibliotecários construíram a ciência da biblioteca ou Biblioteconomia. Qual a sua epistemologia ou dizendo de outra forma, qual são as características que fazem da Biblioteconomia um campo de conhecimento a partir de seus referenciais próprios, de suas formas de exercer a prática de conhecer?

 

A teoria do conhecimento biblioteconômico, que dá a ciência da biblioteca, aparentemente sempre foi vítima. Pode ser que isso tenha relação histórica com o fato de que a biblioteca sempre foi um farol do saber em meio à escuridão da cultura não letrada.  Pensemos: se a biblioteca é o lugar onde estão as fontes de iluminação da mente que clama por desenvolver a profundeza do intelecto e se sempre é grande o número de pessoas desescolarizadas, analfabetas funcionais, desconfiadas daqueles que melhor sabem utilizar o conhecimento disponível em forma de letra, então não é estranho que essa  biblioteca  sofra algum desprezo e quem nela atua receba um reconhecimento social menor. Parece que a quem mais se teme, de quem mais se tem medo, é desse que se quer maior distância. Ora, mas de onde vem a vitimização do conhecimento teórico que constitui a ciência da biblioteca ou Biblioteconomia? Penso que, em parte, vem do bibliotecário, que em sua trajetória o foi forjando, mas que a certa altura do caminho delegou a sua produção ao segmento estritamente acadêmico que, por sua vez, o enclausurou, despojando o bibliotecário não acadêmico desse domínio. Isso é uma pressuposição.

 

Como se pode discutir em torno dessa pressuposição no caso brasileiro? Nas últimas décadas, tem se tornado evidente que as técnicas e as aplicações das tecnologias da informação e comunicação tomaram quase todo o espaço da limitada reflexão social, política e filosófica que os profissionais bibliotecários ainda faziam até o início dos anos 1960. Igualmente, tomaram bastante espaço dessa reflexão os aspectos pragmáticos da gestão dos acervos e das práticas documentárias. O ponto alto desse processo, que chamarei de alienação ou distanciamento social, deu-se com o protagonismo da academia [constituída pela escola de Biblioteconomia] que importou e difundiu exaustivamente a ideia de que há uma categoria mais ampla a envolver todas as profissões que lidam com acervos e práticas documentárias, isto é, “profissionais da informação”. Mas não foi devidamente dito que essa é uma categoria nominalista, que é uma rotulação intelectual distinta das profissões historicamente constituídas. Essa categoria nominalista contaminou o discurso profissional de bibliotecários, de arquivistas, de museólogos e, atualmente, se amplia com a difusão ou desfocamento progressivo da profissão de bibliotecário.

 

Com essa balbúrdia, se chegou a um estágio em que alguns bibliotecários acham inadequado serem tratados de outra forma que não de profissionais da informação. O mais grave disso é que estudantes de curso de Biblioteconomia, que não conhecem a Epistemologia da Biblioteconomia, porque grande parte de seus professores passa ao longe dessa temática, consegue organizar Encontro de Estudantes de Biblioteconomia que, ao mesmo tempo, é encontro de não sei quantos grupos, de não sei quantas denominações de cursos, que, ao fim, não sabem quem são ou serão. Por isso, uma das primeiras discussões, que não levam a nenhum lugar nos ENEBDS e ERBDS, é saber porque não cabem os temas de suas preferências. Ora!

 

Outras categorias profissionais têm tratado fatos semelhantes de maneira que,  acho, podem gerar contribuição relevante, se analisados devidamente, para a retomada da reflexão sobre a identidade dos bibliotecários e dos profissionais de áreas que lidam com  a gestão dos acervos e das práticas documentárias. Um exemplo que é de conhecimento geral é constituído pelas profissões da saúde. Desconheço médico, enfermeiro, nutricionista, etc. que estejam a brigar por querer que o seu nome profissional seja substituído por “Profissional da saúde”, pois sabem que essa expressão é meramente uma categoria nominalista, que serve para gerar um agrupamento no interesse de apontar o destino da ação final das várias categorias profissionais reunidas sob essa expressão.

 

Em reforço a esse argumento, faço referência ao Conselho Nacional de Saúde que, por meio da Resolução CNS nº 287 de 08 de outubro de 1998, relacionou “as categorias profissionais de saúde de nível superior para fins de atuação do Conselho” (Em: http://www.confef.org.br/extra/juris/mostra_lei.asp?ID=12. Acesso em: 21-02-2014). Nesse documento, estão listadas quatorze categorias de profissionais da saúde: 1. Assistentes Sociais; 2. Biólogos; 3. Biomédicos; 4. Profissionais de Educação Física; 5. Enfermeiros; 6. Farmacêuticos; 7. Fisioterapeutas; 8. Fonoaudiólogos; 9. Médicos; 10. Médicos Veterinários; 11. Nutricionistas; 12. Odontólogos; 13. Psicólogos; e 14. Terapeutas Ocupacionais. E como categorias profissionais, que lidam com objetos próprios, seus coletivos sabem resguardar suas especificidades e igualmente serem vigilantes em relação aos seus respetivos territórios de ação. Por conhecerem sua trajetória histórica de construção profissional, não estão preocupadas com uma formação comum, tronco comum, núcleo comum dos cursos, etc. coisa que se vê e ouve como discurso novidadeiro, com audiência garantida no ambiente universitário brasileiro da Ciência da Informação.

 

Finalizando, Ciência da Informação é meramente o nome que egressos de outros campos profissionais deram inicialmente para a Epistemologia da Ciência da Biblioteca ou Biblioteconomia a fim de melhor ocuparem esse campo e, assim, passarem a colonizar os Cursos de Biblioteconomia. Com esse evangelho, pretendem estender o domínio à Arquivologia e à Museologia.

 

Há quem aplauda isso; mas há que se discutir isso.


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB