PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: OS USUÁRIOS DAS BIBLIOTECAS, ARQUIVOS E MUSEUS: PESSOAS A CUIDAR!

Vou fazer um rápido exercício que se orienta pela ideia predominante em algumas mentes de gentes que se encontram nos programas de pós-graduação em Ciência da Informação - instalados e em funcionamento no Brasil de hoje - cujo foco  perfila-se em torno da noção de que se pode conceber as pessoas que buscam bibliotecas, arquivos e museus como uma abstração que responde pelo título de usuário da informação. Evidentemente, algumas dessas gentes recusam uma visão completamente unidimensional pelo fato de que em sendo também pessoa, que poucas ou muitas vezes têm que experimentar a ida a essas instituições prestadoras de serviços, sentem distintas expressões de tratamento. Além disso, há uma noção consolidada na literatura sobre  gestão de instituições prestadoras de serviços de informação que responde pela distinção entre usuários muito frequentes – geralmente denominados reais, por essa literatura – e usuários que não frequentam esses serviços – geralmente designados como potenciais.

 

Quando se olha para a situação de fato, para o que ocorre cotidianamente na relação entre a oferta desses serviços e as pessoas que os utilizam ou poderão vir a fazê-lo, há uma escala muito mais ampla, que vai desde os que utilizam com muita frequência, por não terem (a decorrer de várias circunstâncias) outras alternativas até aqueles que rejeitam o uso (a decorrer também de várias circunstâncias), inclusive por se sentirem mal atendidos, rejeitados, humilhados, expulsos. Em geral, as razões que essas pessoas descaracterizadas do conceito de usuário real possam ter não são devidamente examinadas. Isso se dá em decorrência de muitas verdades assumidas como tais pelos profissionais que atuam naquelas instituições prestadoras de serviço de acesso a distintos recursos de memória e conhecimento. Assume-se, majoritariamente, como indiscutível a “desqualidade” do usuário, uma entidade estatística, um ser incapacitado para entender por que as estruturas desses serviços devem ser as que lhes são oferecidas pelos especialistas em sua organização e gestão, e não as estruturas que ele quer, quando e como as quer. Sua “desqualidade” mobiliza os especialistas a promover estudos de usuários, quando eles lembram que seus vencimentos remuneratórios vêm direta ou indiretamente pelo consumo de suas competências profissionais por parte daquelas pessoas. Mas, geralmente, os refinados instrumentos empregados e as complexas estratégias de sua formulação, aplicação e utilização pelos especialistas gestores e consultores de gestão de bibliotecas, arquivos e museus, não levam em conta que, na maioria das vezes, são empregadas formas que servem para manter ainda mais impessoal a relação entre as instituições prestadoras de serviços a que estou me referindo e os usuários. Isso se dá pela simples razão de que, propositadamente ou não, os usuários são pensados como seres descarnados, descerebrados, des+almados, des+sociabilizados, des+socializáveis etc., mesmo quando os especialistas em estudos de usuários estejam a utilizar, supostamente, instrumentos que em sua criação pressupõem a existência de pessoas que, portanto, se fazem pessoas porque se comunicam interpretando o mundo vivido na relação que realizam entre si. O próprio instrumental que os especialistas empregam se assentam nesse pressuposto comunicacional, mas nem sempre são efetivados de modo a que forma e conteúdo convirjam.

 

Certamente, há vários motivos para que os especialistas e os gestores sejam mal sucedidos no propósito de melhor conhecer o usuário, mas o principal parece ser a falta da aplicação de uma noção básica que está na relação entre as pessoas, aplicável em quaisquer circunstâncias, definida como “cuidado”.

 

Quando eu penso em cuidar de pessoas e de seus interesses, desejos e necessidades eu tenho que pensar como eu lá. Isto é, quando eu me vejo na situação de buscador de um serviço que eu desejo, quero e mereço ser atendido, porque minha humanidade e as fragilidades de minha existência humana me autorizam. Nessa circunstância, eu pessoa estou a falar de minha interioridade e de minhas circunstâncias que estão, com diferentes matizes, em todo o eu que está na outra pessoa, porque também isso que está essencialmente na outra pessoa também está em mim. Em suma, o eu no outro e o outro em mim, que me dá a noção de mútuo espelho, de um Ego que fica retido na minha autocontenção, mas que não me impede de projetar o nosso (meu e da outra pessoa) Alter. Os especialistas em estudos de usuários e os gestores de bibliotecas, arquivos e museus, ao enfatizarem o Ego e cercarem o Alter num círculo negro e impermeável à comunicação horizontal transformam suas intuições prestadoras de serviços em uma espécie de projeção de suas vontades descarnadas de “donos das verdades” profissionais e igualmente de seres sem paixão pelas pessoas. Por isso, ao não serem cuidadoras não se comunicam, mas apenas mandam mensagens não se importando que isso seja um caminho para a formação da exclusão das pessoas que não apenas buscariam seus serviços, mas por eles pagam ainda quando se sintam e sejam factualmente deles excluídas. Há melhor maneira de demonstrar isso no Brasil, do que o afastamento quase universal que se dá entre bibliotecas, arquivos e museus e a população? Para ficar no caso da biblioteca, enquanto a multa financeira continuar como uma ideia que predomina justificada, inclusive em bibliotecas de universidades como forma de “educar” o usuário, tanto mais as pessoas recusarão essa sentença domesticadora e tanto mais a biblioteca será uma instituição decadente.

 

Que o final do ano de 2013, com a parada de férias profissionais para muitas pessoas e muitos especialistas, sirva de momento para a reflexão do que fazer para a prevalência de valores humanos mais cuidadicionistas que devem já estar em tantos e que também sirva de esperança de que esses valores possam brotar e florescer nos demais. Feliz 2014!


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB