CONSTRUÇÃO DA VIDA / EDIFÍCIO DA VIDA
Maria das Graças Targino
e
Adriana Maria Magalhães
Imaginamos que Chico Buarque de Holanda faz parte do rol de brasileiros bastante conhecido por nossa gente. São canções e peças de teatro. Das canções produzidas ao longo de 34 anos de carreira, como selecionar as obras-primas? Eis poucas e belíssimas, entre uma “multidão”: Atrás da porta; Carolina; Meu caro amigo; Olhos nos olhos; Pedro pedreiro. No teatro, se eternizaram Roda viva; Gota d’água; e Ópera de malandro, mas há muito mais... Sobretudo a partir dos anos 80, sua produção musical se integra com a literária, o que justifica o sucesso de seus últimos romances: Estorvo (1991); Benjamim (1995); Budapeste (2003, que dá origem ao filme de mesmo título, lançado em 2009); e Leite derramado, também de 2009. É uma obra imensa de qualidade inimaginável. Sua figura discreta, seu jeito tímido, seu porte de “bom moço”, seus olhos claros são ingredientes que despertam mil corações e mil outras produções. É o que chamamos de texto-pretexto. É o que chamamos de inspiração.
Tudo ou quase tudo está em sua página eletrônica http://www.chicobuarque.com.br, estruturada em quatro partes bem definidas – obra; vida; textos; e sanatório geral (seja lá o que isso signifique), sem contar links que remetem às novas turnês, às formas de aquisição de seus produtos, e, sobretudo, ao detalhamento de sua produção. Mas há o que não vai para lá. São textos que surgem a partir de sua obra. Eis um exemplo – EDIFÍCIO DA VIDA / CONSTRUÇÃO DA VIDA. Trata-se de um exercício entre outros mais que integram a recém-finda Oficina “Leitura e produção de gêneros acadêmicos em jornalismo: brincadeira que dá prazer”. Desde a designação, é evidente a finalidade da disciplina optativa do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Piauí: estimular a produção textual no que tem de pura magia: o encantamento de escrever.
No caso, a atividade se refere ao que nomeamos de releitura musical. É tarefa simples e de riqueza ímpar. Os alunos escutam em silêncio e em postura totalmente livre, por duas vezes consecutivas, a canção de Chico, intitulada Construção, composta em 1971, em meio aos anos tenebrosos da Ditadura Militar. Aqui está ela transcrita, na íntegra:
Construção
Chico Buarque
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público.
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.
Nada mais do que versos e sons. Sons e versos. E, então, surgem questionamentos para os quais inexistem respostas únicas: “podemos reduzir uma canção a sons e versos? Ela se extingue em palavras ditas? Ela se esvai? Há significados indizíveis?” E, de fato, o grupo de seis mestrandos constata que a fusão de sons e versos pode proporcionar ao ser humano sentimentos e sensações inimagináveis. A canção é em si mesma um misto de denúncia e súplica (o que comprova a relevância de situar no tempo e no espaço as obras produzidas). Como decorrência, apesar de nenhum processo de interferência, isso concorre para que os textos produzidos estejam todos eles carregados de emoção, cálices plenos de alegria ou dor.
Reiteramos: trata-se de um exercício livre. A proposta não é promover nova leitura, interpretação ou resumo crítico de natureza literária da canção. O intuito é sentir versos e sons. É o deleite proporcionado pela melodia. É deixar o texto individual correr / escorrer / escorregar, nascer / ganhar vida e, talvez, morrer no esquecimento.
E em analogia ao título de uma palavra miseravelmente solitária – construção – acrescemos algo mais – construção da vida, que nos serve de analogia para o edifício da vida. E o que é edifício? Respondemos em tom de troça: edifício é um prédio alto! Uma brincadeira inocente que se faz com quem cedo afirma encontrar dificuldades no decorrer da vida. Estudar é difícil! Emagrecer é difícil! Viver é difícil! Se analisarmos a vida pelo prisma da dificuldade, acabaremos enterrados num poço de choro e lamentação. A vida é um convite a tentar, sempre. A vida é um convite a continuar, sempre. A cada dia, ganhamos 24 horas livres para usá-las (na medida do possível) conforme nossa vontade. E o que fazemos com nosso tempo?
Uns o preenchem demasiadamente, a ponto de se declararem sem tempo. Outros permanecem inertes. Observam a sucessão de minutos e horas, à espera de um acontecimento que o arranque do ócio. Com o tempo, os primeiros apresentam sinais de irritação e cansaço. Os segundos tendem a mergulhar em melancolia sem fim. A modernidade nos obriga a desempenhar tarefas sucessivas. Eis um atropelo só. A pós-modernidade nos convida a fazer ainda mais: estar em vários lugares ao mesmo tempo, a conviver com identidades distintas num mesmo corpo.
E para quê? Para onde corremos tanto? Ou o que esperamos aqui sentados? A morte é a única certeza que carregamos. Dela não escapamos, mas o que, na verdade, nos aflige são as incertezas: a visita incômoda chegará em breve ou não? E os entes queridos, como ficarão? Como será essa passagem? Lenta, dolorosa, súbita ou inesperada? A incerteza! Esta sim é a grande causadora dos males modernos. A incerteza nos consome. Gera ansiedade. Produz doenças físicas e mentais. Se contabilizarmos quantas vidas a incerteza e a angústia já ceifaram, certamente ficaremos alarmados.
Por exemplo: aquele que atravessou a rua correndo, fora da faixa, não foi vítima de acidente de trânsito e, sim da incerteza – de que o melhor momento para atravessar a rua chegaria cedo ou tarde – e, da angústia – de logo chegar ao outro lado da rua para simplesmente continuar a caminhar. Como a personagem de Chico Buarque, quiçá, atravessou a rua com seu passo tímido. Quiçá, atravessou a rua com seu passo bêbado.
A angústia e a incerteza estão conosco até mesmo nos momentos de lazer. O zapping de controle remoto em punho, na busca do melhor programa na TV é prova disso. Essa nova característica humana já é explorada pelo mercado. Dispomos de dois, três e, às vezes, quatro aparelhos telefônicos para ter certeza de que seremos encontrados ou que encontraremos a quem buscamos. Dispomos de uma TV na sala, outra no quarto, mais uma no terraço e, até na cozinha para não perder a ligação com o mundo. Um e-mail pessoal e outro profissional que vasculhamos várias vezes ao dia em busca de uma comunicação, qualquer uma... Uma paleta de sombra, com tantas opções de cores que não conseguimos sequer usar antes do produtor alcançar seu prazo final de validade.
Tantas opções geram incerteza e angústia. Estas geram medo e paralisia, que originam gastrite e arritmias, que, aos poucos, detonam nossas células, nossos sistemas, nosso corpo! E, então, quiçá, nos reste repetir a história da personagem de Chico. O homem cumpre com meticulosidade ou indiferença (não saberemos nunca!) os ritos cotidianos da vida – amar o (a) companheiro (a); beijar o filho; trabalhar arduamente; sentar para descansar; comer feijão com arroz; beber e soluçar; dançar e gargalhar. Porém, num sábado qualquer, o homem tropeça no céu azul ou cinza (não saberemos nunca!) como um bêbado terno. Aquele que escuta em sonhos a música que recorda o ser amado. Aquele bêbado que ri silenciosamente e não causa danos a ninguém – a não ser a ele próprio. O homem flutua no ar como um pássaro ou como um príncipe ou, quem sabe, como um sábado de fulgor e de brilho perdido entre as nuvens.
Entre luzes, sons, sonhos e cores, ele se acaba no chão feito um pacote flácido; se acaba no chão feito um pacote tímido; se acaba no chão feito um pacote bêbado. E, por fim, morre na contramão atrapalhando o tráfego; atrapalhando o público; atrapalhando o sábado. O meu, o seu, o nosso!
Adriana Maria Magalhães é jornalista vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí. E-mail para contato: drikammagalhaes@hotmail.com