DE LIVROS, BIBLIOTECAS E BIBLIOTECÁRIOS
Rememoramos que o mês de abril enaltece o livro em suas diferentes modalidades e em seus diferentes formatos, incluindo o festejado livro eletrônico. Por exemplo, o dia 2 de abril é o Dia Internacional do Livro Infantil, data de nascimento do dinamarquês Hans Christian Andersen, autor de histórias que atravessam o tempo e vencem barreiras geográficas, como “O patinho feio” e “O soldadinho de chumbo”. Em 18 de abril, no Brasil, desde 2002, sob os auspícios da Unesco-Brasil, comemora-se o Dia Nacional do Livro Infantil, aniversário de Monteiro Lobato, ícone da literatura infanto-juvenil, com personagens famosas do Sítio do Picapau Amarelo, tal como a boneca Emília. Instituído desde 1996, também pela Unesco, 23 de abril é o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor.
Por tudo isto, no rastro do recém-findo abril, lembramos que livro, de forma consciente ou inconsciente, nos remete à biblioteca. Biblioteca nos remete à possibilidade de aceder à sucessão contínua de grandes nomes que se mesclam com estudiosos e escritores, que se não atingiram reconhecimento universal ou nacional, prosseguem escrevendo movidos por serena vocação sacerdotal, que, de tão forte, parece misteriosa e intocável.
Afinal, em que pesem as inovações tecnológicas com seus I-Pod, I-Pad, audiolivros, e-books e as memoráveis bibliotecas virtuais, a presença das bibliotecas físicas, em sua imponência ou simplicidade, nos ajuda a meditar sobre as transmutações sociais e culturais ao longo dos dias, e, sobretudo, sobre a força da cultura. Isto porque, em que pesem as contradições em torno de um país culto / avançado, o certo e irretocável é que a cultura, no mínimo, serve para assegurar, por meio da lucidez e de visão de mundo mais ampla, que estamos sendo tragados por valores pouco elogiosos e que nos distanciam da generosidade. Quer dizer, o conhecimento adquirido e assimilado, idealmente, resulta útil para um olhar mais profundo sobre a miséria humana, embora continuemos impotentes para modificar o mundo em sua crueldade...
No entanto, se livros e bibliotecas nos cercam por todas as partes, é desastroso constatar a imagem ainda hoje estereotipada em torno da profissão de bibliotecário. Se números concretos atestam o ingresso crescente do homem no universo da biblioteconomia, a imagem do profissional segue vinculada à figura feminina. A este respeito, há estudos irretocáveis, a exemplo do clássico trabalho de H. Lewin. Ao analisar a demanda ao ensino superior no Brasil, agrupa as carreiras segundo sua posição numa escala de feminização, com base na prevalência percentual de mulheres: (a) carreiras extremamente femininas –
E mais, o dia-a-dia mostra que persiste certa desvalorização em torno das profissões ditas femininas. Em se tratando da biblioteconomia, é preciso retomar que sua história está atrelada não somente ao estigma de ocupação feminina, mas, ainda mais grave, à idéia de ofício “aristocrático”, destinado às mulheres de famílias ricas, e, que, portanto, poderiam abrir mão do exercício profissional consciencioso para manter mera ocupação como forma de alternância com suas horas de ócio. Além disto, com frequência, ainda hoje, endossamos a idéia de rigidez e de inflexibilidade. Há fortes conotações pejorativas e anedóticas que cercam o bibliotecário. A imagem caricatural presente em livros, filmes e propagandas está quase sempre ligada à velhusca de cenho franzido, dedo em riste, mais próxima do estereótipo do censor alienado e déspota do que do dinâmico mediador entre informação e usuário.
Se tudo isto soa como discurso antigo e arcaico, rememoramos experiência recente (ano 2011), vivenciada no Círculo de Leitura da Biblioteca Pública de Salamanca, Espanha. Dentre as publicações lidas e discutidas, dois títulos subsequentes, coincidentemente, fazem alusão à profissão. O primeiro refere-se ao livro Sóniechka (sem tradução para o português), agraciado com o Prêmio Literário Médicis, criado em 1958, na França. A autora russa Liudmila Ulítskaya versa sobre a passividade que cerca a personagem Sóniechka (ou Sônia), jovem judia que, por falta de encantos, se refugia na leitura de novelas e alcança um posto como “bibliotecária” numa instituição qualquer. Sua primeira paixão pelo excêntrico pintor Víktorovich lhe distancia para sempre dos livros e do trabalho, exposto, assim, como “provisório” e “descartável”.
O segundo livro refere-se a uma das produções da austríaca Marlen Haushofer.
Não posso afirmar que minha profissão me apaixone, mas é uma atividade tranqüila, limpa e, em algumas ocasiões, até interessante [...] Quiçá tenha uma desvantagem, pois fomenta minha tendência ao individualismo e ao encapsulamento. A biologia ou a medicina, provavelmente, haveria me dado maior satisfação. Agora é tarde para mudar o rumo dos acontecimentos. Quantos têm, por acaso, a sorte de encontrar uma verdadeira profissão? Logo, permanecerei na biblioteca. (HAUSHOFER, 2003, p. 44).
Num trecho tão curto, muitos pontos chamam a atenção. Entre eles, a confessa falta de paixão e a insatisfação por não exercer outros ofícios. Isto é per se bastante grave, uma vez que passamos parte considerável de nossas vidas atuando como profissional, independentemente do que seja. Também espanta a colocação de Annette em classificar a biblioteconomia como atividade tranquila e limpa. Nem tranquila nem limpa. Convivemos, a cada dia, com o dinamismo da própria vida, o que desperta, nos menos medíocres, a angústia de seguir os mandos e desmandos da natureza humana, o que nunca é tranquilo... Se o termo – limpo – está usado como lícito, nada há a comentar. Se adotado no sentido literal, rememoramos os cuidados diários exigidos ante o nível elevado de infecciosidade das bibliotecas.
E as palavras da mulher são ainda mais contundentes: “[...] em algumas ocasiões, até interessante [...] Quantos têm, por acaso, a sorte de encontrar uma verdadeira profissão? Logo, permanecerei na biblioteca”. Ao tempo
Podemos imaginar que a obra de Haushofer, publicada originalmente em 1957, está ultrapassada. Fomos em busca de comentários sobre ela e aí estão, literalmente, palavras que se repetem em diferentes resenhas: “[…] La puerta secreta [é] uma obra importante que não perdeu nada de sua atualidade (grifo nosso) e que, sem dúvida, se situa entre o melhor da literatura alemã da pós-guerra.”
De qualquer forma, indiferentes aos estereótipos que teimam em sobreviver, devemos chamar a atenção, sistematicamente, para a função social da biblioteca e, consequentemente, para nosso papel de agentes, distantes do apego excessivo a técnicas em detrimento dos efeitos da biblioteca como instituição social. O essencial é o exercício da criatividade e da criticidade a fim de que atuemos num mundo em constante mutação, trabalhando, invariavelmente, com os indivíduos e nunca sobre eles. O importante é a luta contínua para atestar a relevância de livros, bibliotecas e bibliotecários, hoje e sempre, no Brasil ou além dele... É torcer para que a história de Annette e de Sóniechka se limite à ficção.
FONTES:
HAUSHOFER, Marlen. La puerta secreta. Madrid: Siruela, 2003. 178 p.
LEWIN, H. Educação e força de trabalho feminina no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 32, p. 45-59, fev. 1980.
TARGINO, M. das G. Olhares e fragmentos: cotidiano da biblioteconomia e ciência da informação. Teresina: Edufpi, 2006. 266 p.
ULÍTSKAYA, Liudmila. Sóniechka. Barcelona: Anagrama, 2007. 118 p.