AÇÃO CULTURAL


SOBRE A ORALIDADE E A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA BIBLIOTECA

Nesta oportunidade, trago para reflexão o tema da oralidade na biblioteca - vinculada principalmente à Hora do Conto - , que perpassa o fazer biblioteconômico e afeta o bibliotecário, como também por ele é afetado, devido a necessidades, cobranças, atuações e algum modismo.

 

Todavia, é preciso que o bibliotecário atente para o conhecimento oral, no contexto da biblioteca, bem como para a importância da oralidade, de contos orais, etc., e abra espaço para eles, além de organizá-los; mas, não se pode pretender mais do que isso para esse profissional, o que seria fugir do campo específico, sob o risco de invadir outras searas, como as artes cênicas ou a pedagogia, por exemplo, caso se pretenda que o desempenho seja pessoal e unicamente seu.

 

A Hora do Conto, vista como obrigação do bibliotecário, não tem sentido. Generalizada como atitude ou prerrogativa, parece-me indevida e inapropriada, por vários motivos.

 

Falar individualmente é diferente de falar e se apresentar em público/para o público, já que envolve vários fatores, intrínsecos e extrínsecos, favoráveis ou não à atuação como contador de histórias. Sem grandes problemas, pode-se utilizar o suporte vocal para diferentes atividades, na biblioteca, que não somente narrativas e leituras em voz alta (dramatizadas ou não), como a Hora do Conto.

 

Penso que a oralidade, nesse sentido, pode fazer parte ou não das potencialidades do profissional, principalmente em determinados tipos de bibliotecas, se entendidas como centros de informação e cultura, não apenas de informação expressa em texto escrito.

 

Estão aí envolvidos atributos pessoais que independem da nossa vontade (mas, podem ser ajudados por ela). Um exemplo muito particular: como bibliotecária escolar, apesar de ter escrito “Vó, me conta uma história?”*, confesso que sou péssima nisso, ao  contrário de minha mãe, que era incrível para inventar histórias que fascinavam quem as ouvisse. Por outro lado, diante da minha falta de jeito e ciente do que o fazer bibliotecário requeria naquela biblioteca escolar, ensinava os professores a fazê-lo e procurava oferecer o suporte teórico a eles, embora reconhecendo que o currículo de Biblioteconomia dificilmente encaminha para a contação de histórias, em geral.

 

Acontece que, se a história não estiver inserida num texto e for criada e contada de memória, caímos no gargalo do registro, dada a sua imaterialidade, referente a certas estratégias da Hora do Conto, exercidas sem o acompanhamento concomitante de texto.

 

Além disso, é preciso destacar que um dos deveres da biblioteca é que ela lide também com a informação oral, dependente fortemente da memória e inserida na categoria da imaterialidade. Entretanto, a memória, na biblioteca,  deveria ser guardada, organizada e recuperada, apesar de sua condição de fluidez, de imaterialidade e transitoriedade, ainda mais que o profissional que lá se encontra é também transitório, de uma certa maneira, e tal conhecimento se prejudicaria com a eventual ausência desse “guardador”. Não é um procedimento confiável, pois,  apesar da riqueza dos conteúdos de que se pode dispor. Se o conhecimento oral não dispuser de um registro qualquer, como se irá garantir que ele existe ou existiu? Em grandes chances, ele se perderia ou se diluiria. Então, a tensão fica na produção-registro-organização-mediação da informação oral (de uma forma bem simplista), por parte do bibliotecário, no rol de suas atribuições profissionais.

 

É preciso pensar que não apenas os contos orais se inserem nessa esfera, mas também conhecimentos ancestrais, de ordem ficcional ou pseudo-científica, certos folguedos, mitos, o folclore, a culinária, etc., investidos de valores que passam de pai para filho e/ou de mãe para filha, expressando uma cultura familiar ou comunitária.

 

Quando se pensa na questão de registros físicos e não físicos (isto é, aqueles produzidos na oralidade) é preciso lembrar que há autores que lidam com isso muito bem, quer na área de História, quer na de Museologia, por exemplo; para eles, os conhecimentos (inclusive os produzidos na oralidade) não são exatamente iguais aos registrados, em alguma medida, mas não são conflitantes e podem ser harmoniosos.

 

Assim, a expressão “literatura oral” seria um termo vinculado ao conceito estético da prosa e da poesia – os contos, histórias e “causos”, inclusive -, antes de serem eventualmente registrados. E aí, pergunta-se: os “textos orais” são mais belos ou menos belos do que os que constam da Literatura conhecida como tal? Além disso, é preciso destacar, nessa questão, que existe uma literatura literária e outra não-literária.

 

A meu ver, do ângulo do processo da formação de base, o compromisso dos cursos de Biblioteconomia é com o seu objeto de sempre – a informação, em suportes diversificados ao longo do tempo – basicamente organizando-a e disseminando-a. Ao disseminá-la, o profissional faz a opção que acha coerente com a sua comunidade usuária, de acordo inclusive com suas características pessoais e/ou recursos disponíveis (humanos, entre outros) e com base em conhecimento e habilidade própria reconhecidos; a Hora do Conto incluída entre as possibilidades.

 

Uma das opções para disseminar a informação é a Ação Cultural, na qual se insere a Hora do Conto, com a contação de histórias para jovens e/ou adultos. Interpretando as idéias de Teixeira Coelho** , o bibliotecário não pode ser visto como aquele que desempenha obrigatoriamente a ação cultural (até pode fazê-lo), mas ele é certamente o coordenador/agenciador de um projeto imprescindível, no qual pessoas dotadas de sensibilidade e de habilidades seriam os verdadeiros e competentes sujeitos da ação, a menos que o bibliotecário reúna ele mesmo essas qualidades. E aí, tudo bem! Portanto, vemos que há bibliotecários e bibliotecários; e sempre haverá. Mas, não é uma prerrogativa sua, com exclusividade.

 

Entretanto, como a Ciência da Informação e a Biblioteconomia têm ambas como objeto de estudo a informação, a mediação dessa informação é entendida como sendo uma decorrência, podendo acontecer por meio dos serviços-meio e culminando com os serviços-fim, com a participação do bibliotecário (bem ou mal preparado no curso de formação ou fora dele), constatando-se, conforme o caso, se a informação foi transferida e causou efeito, ou não mediada e relegada ao estado de mero dado, por continuar inerme, inerte, sem efeito; pela capacidade/incapacidade do referido mediador.

 

“Pari passu”, pretende-se que ela – a mediação – também alavanque o usuário da informação, na biblioteca, para que ele se torne um bom leitor, por N conhecidos motivos e estratégias. Essa idéia provoca, de quando em quando, campanhas de formação de mediadores de leitura, que não têm como público-alvo exclusivamente os bibliotecários, no sentido defendido por alguns.

 

O professor Briquet já falava em programação de leitura na biblioteca, nos idos de 1987, em depoimento que consta de dissertação de mestrado defendida na PUC de Campinas***. Sobre essa programação pretendida, vejo-a como uma atitude de mediação “coletiva” por parte do bibliotecário e sou de opinião que é possível incluir textos escritos e orais (produzidos oralmente), sem conflitos.  Nessa dissertação, com o depoimento de bibliotecários notórios, procurou-se mostrar também que, desde a seleção e a composição do acervo, o bibliotecário já estaria lidando com elementos pedagógicos para levar os usuários leitores ao universo do conhecimento e da informação (pelo acervo local e pelo acervo ampliado, de acordo com o pensamento atual), o que passa – claro! – pelo âmbito da mediação da literatura.

 

Entretanto, quando se fala sobre a ausência de nossos profissionais em projetos de promoção de leitura, não podemos nos esquecer que há muitos outros modos de atingir os objetivos específicos, além desse tipo de campanha e da contação de histórias. Como bibliotecária escolar, não me sentia à vontade contando histórias para os alunos; mas também não me sentia culpada por isso e procurei suprir essa dificuldade de outras maneiras, como relatei acima.

 

Há um outro ponto a ser comentado: o leitor implícito, para Iser****, e o leitor pressuposto, para quem escreve, nem sempre é o leitor real. Vi muito isso na biblioteca escolar, além de textos fruídos por outros motivos que nem sempre eram os pretendidos pelos autores, segundo os próprios depoimentos de alguns deles e constatações minhas. Por outro lado, nem sempre o que o leitor “antevê” é o que ele vai encontrar no material ou no texto de leitura, literária ou não, oralizada ou não.

 

   

Referências

 

*        BARROS,  M.H.T.C. de. Vó, me conta uma história. In: BARROS, M.H.T.C. de, BORTOLIN, S., SILVA, R. Leitura: mediação e mediador. São Paulo: FA Editora, 2006.

 

**       TEIXEIRA COELHO, J. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Coleção Primeiros Passos, 216).

 

***   BARROS, M.H.T.C.de. Presença de elementos pedagógicos nos serviços biblioteconômicos. 1987. 239 p. Dissertação (Mestrado em Biblioteconomia) – Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas.

 

****    ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. 2 v.

 


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MARIA HELENA T. C. BARROS

Livre-docente em Disseminação da Informação (UNESP); Doutora em Ciências da Comunicação (USP); Mestre em Biblioteconomia (PUCCAMP); Especialista em Ação Cultural (USP); Formada em Biblioteconomia e Cultura Geral (Fac. Filosofia Sedes Sapientiae); Autora de livros e artigos científicos publicados no Brasil e no Exterior