PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: O PENSAMENTO COLETIVO FRAGMENTADO DO BIBLIOTECÁRIO NO BRASIL – PARTE 1

Quero iniciar a partir desta coluna de novembro de 2009, uma pequena série de reflexões que, mantendo o foco na prática profissional e ética, submete a exame algumas facetas da conduta coletiva do bibliotecário atuante no Brasil. Para isso, tomo como base as recomendações que os bibliotecários brasileiros foram produzindo nos últimos 55 anos, no âmbito do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, o qual desde o ano de 1959 teve sua denominação estendida para Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD).

 

Num primeiro momento chama a atenção o modo fragmentário da tomada de decisão que afeta a política profissional, com reflexos de longo prazo, hoje sentidos, tendo como efeito, em vez do fortalecimento de uma identidade de grupo, o seu desmoronamento, lamentado em muitos discursos feitos nos últimos anos. Evidentemente, que para essa fragmentação do pensamento, têm contribuído as profundas modificações produzidas nas políticas econômicas e sociais no âmbito global, mas de outro lado tem pesado a circunstância que poderíamos chamar do desejo do bibliotecário brasileiro de “seguir a onda da modernidade”. Também valeria como possível atenuante para esse comportamento o fato de que “seguir a onda da modernidade” traria uma boa perspectiva de sobrevivência profissional; adviria da percepção “real” da necessidade de assimilação e incorporação como prática profissional, das melhores técnicas e tecnologias disponíveis em nível mundial relativas ao armazenamento e recuperação de conteúdos, especialmente, nos campos de conhecimento que são traduzidos em políticas de forte alavancagem da economia. Contudo, o que se viu foi o progressivo descuido da ênfase em setores relacionados a serviços humanos e sociais da Biblioteconomia praticada no Brasil. Esse descuido, levou à construção de um certo desprestígio da profissão de Bibliotecário no país, e se manifesta na ausência ou na precariedade de políticas para a Biblioteca Pública, para a Biblioteca escolar e, não menos relevante, nos orçamentos destinados a essas instituições e nos patamares médios de remuneração de seus bibliotecários. Essa miséria construída pelos bibliotecários brasileiros, contra si e contra sua identidade profissional, pavimentou um caminho que se fez em sentido contrário ao que ocorreu em outras regiões do planeta.

 

Utilizando o pensamento dos bibliotecários brasileiros, sintetizado nas recomendações do CBBD desde 1959, pretendo refazer o caminho da desconstrução profissional de que hoje se pode testemunhar nas falas dos bibliotecários, que à falta de convicção sobre sua identidade teimam em se designar em vários ambientes pela alcunha de Profissional da Informação. Fazendo um breve parênteses, sabe-se que várias categorias profissionais, cuja atuação se dá  no setor econômico-social da saúde, insistem em ser denominados pelos seus nomes de origem: médico, enfermeiro, nutricionista, etc., porque vêem nisso a sua especificidade ocupacional. O bibliotecário não teria mais especificidades que o identificam ocupacionalmente como atuando em segmento próprio no setor econômico-social da informação?

 

Retomando o discurso, encontro nas recomendações de sucessivas edições do CBBD a manifestação da ausência de estratégia política e de incompreensão sobre o como fazer valer a unidade coletiva de sua categoria. Essa anomalia sustenta e é sustentada, num processo circular; traduz  a falta de convicção profissional, o que torna frágil o valor e sentido da deontologia bibliotecária expressa no Código de Ética vigente, que existe como um pretenso  instrumento de orientação da conduta profissional dos membros da categoria bibliotecária.

 

O primeiro Congresso Brasileiro de Biblioteconomia foi realizado em 1954. Na correspondente década, o Brasil estava vivendo intensas transformações econômicas, que ainda não se haviam objetivado em um necessário complexo de instituições constituinte de um setor econômico-social da informação antes desse  mesmo ano. Mas a criação do IBBD (Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação) em 1954 contribuiria decisivamente para a modificação, ainda nessa década, desse quadro e começaria a interferir profundamente no discurso dos bibliotecários brasileiros. O  conteúdo ali laborado fora tomado como uma nova perspectiva de trabalho, renda e conhecimento, associado ao industrialismo que passou a representar uma posição protagonista na economia do país. Começava ali a desconstrução da vertente de prática bibliotecária que se poderia chamar de Biblioteconomia Humana e Social, não tanto pela sua total negação mas pelo enorme descompasso entre as necessidades da sociedade mais ampla e os investimentos públicos que deveriam ser feitos e não o foram de fato.

 

A primeira manifestação dessa virada de foco dos bibliotecários brasileiros deu-se pela redenominação, já a partir da 2ª. edição realizada em Salvador, BA, em 1959, do Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e tomou densidade já nas suas recomendações finais. A recomendação de número 3 afirma: “Que seja a documentação incluída definitivamente nos currículos das Escolas de Biblioteconomia”. A existência desse foco novo “no mercado” enseja a possibilidade de pensar “grande” e propugnar através da recomendação de número 4: “Que seja totalmente reestruturada a formação profissional do bibliotecário e documentalista, em curso superior, com quatro anos, no mínimo de duração, a exemplo dos currículos universitários de outras especialidades”. Para reforçar essa via de ação, a recomendação de número 5 afirmou: “Que seja regulamentada em lei o exercício da profissão de bibliotecário e documentalista”.

 

Para não haver esmorecimento dessa submissão quanto ao novo foco de atuação profissional e para reforçar a indispensabilidade da assimilação dessa novidade, as sete primeiras recomendações aprovadas no final do 3° CBBD, realizado em 1961, na cidade de Curitiba, PR, foram dirigidas Ao Ensino de Biblioteconomia da seguinte forma:

 

1 - Que as escolas de Biblioteconomia incluam definitivamente a documentação, não só nos seus nomes, mas também nos seus currículos;

2 - Que a Documentação não seja apenas uma cadeira a ser lecionada no último ano, mas sim um conjunto de disciplinas e técnicas que abranjam a totalidade de seu campo, quais sejam: Produção de documentos, Reunião de documentos, Seleção de documentos e Reprodução de documentos.

3 - Que as matérias subsidiárias da Documentação na medida das possibilidades e das condições locais brasileiras, sejam incluídas no curso.

4 - Que a duração do curso seja no mínimo de quatro anos, a fim de que todas essas disciplinas possam ser ministradas convenientemente, e para nivelá-la aos demais cursos universitários do país.

5 - Que as escolas de Biblioteconomia tenham em mente que estão preparando elites de técnicos e não fornadas de bibliotecários, não devendo subordinar a reestruturação do currículo de quatro anos à possibilidade de diminuição do número de alunos. Devemos levantar o nível das escolas de Biblioteconomia tendo em vista, única e tão somente, os superiores interesses de unificar no Brasil, a formação de Bibliotecário e Documentalista.

6 - Que as escolas de Biblioteconomia, com seus currículos bem reestruturados, em nível universitário, permitam que os bibliotecários já formados voltem aos bancos escolares para se atualizarem nas técnicas da Documentação.

7 – Que este Congresso notifique a FID e a IFLA de que os bibliotecários brasileiros são contrários à formação em separado de bibliotecários e documentalistas e que as escolas brasileiras de biblioteconomia e documentação estão aptas a ministrar as suas técnicas.

 

É evidente que os termos, o momento e as circunstâncias em que foram produzidas essas idéias e estabelecida essa “política profissional e de formação educacional para o bibliotecário” provocou o forte desdobramento dessa política ao  longo das décadas seguintes.

 

Para enfatizar uma certa “cegueira” quanto a necessidade futura de uma Biblioteconomia Humana e Social ou para se perceber o tosco direcionamento nas recomendações  produzidas, destaco alguns dos termos ali acentuados:

 

- Que seja a documentação incluída definitivamente....

 - Que seja totalmente reestruturada a formação profissional do bibliotecário e documentalista...

         - Que as escolas de Biblioteconomia incluam definitivamente a documentação...

         - Que a Documentação não seja apenas uma cadeira a ser lecionada no último ano, mas sim um conjunto de disciplinas e técnicas...

         - Que as matérias subsidiárias da Documentação [...] sejam incluídas no curso

         - Que as escolas de Biblioteconomia tenham em mente que estão preparando elites de técnicos e não fornadas de bibliotecários....

         - Devemos levantar o nível das escolas de Biblioteconomia...

         - Que as escolas de Biblioteconomia [...] permitam que os bibliotecários já formados voltem aos bancos escolares para se atualizarem nas técnicas da Documentação.

         - Que este Congresso notifique a FID e a IFLA de que os bibliotecários brasileiros são contrários à formação em separado de bibliotecários e documentalistas...

 

Têm razão aqueles que reclamam da ênfase que os Cursos de Biblioteconomia dão às técnicas e às tecnologias?

 

Os bibliotecários que, em última instância, devem ser a “consciência” da formação bibliotecária ao interpretar as necessidades sociais, em seu CBBD sempre insistiram, nas recomendações finais, que esse é o caminho e que as Escolas devem sempre reestruturar currículos para assegurar “positivamente” o atendimento dessa visão. Hoje isso se faz do mesmo modo e as necessidades de uma Biblioteconomia Humana e Social continuam ao lado. Pensemos!

 

Continuarei....


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB