LEITURAS E LEITORES


SUCESSORES DE LOBATO?

Após tentativas de mudar conceitos arcaicos da sociedade brasileira do início do século XX e decepcionar-se com o mundo adulto, Monteiro Lobato, inteligente como era, percebeu que suas idéias seriam mais bem aproveitadas se fossem dirigidas a um público menos casmurro, mente mais aberta, livre de preconceitos, nesse caso, as crianças.  

 

Em seu discurso na Biblioteca do Congresso Norte-Americano, na década de 40, proferiu “um país se faz com homens e livros”. A idéia de disseminar a leitura no Brasil por Lobato em sua época, nem sempre foi compreendida em sua totalidade. Talvez ainda hoje não tenha sido totalmente absorvida por nossa sociedade.

 

Lobato fez a aposta correta: as crianças. Escreveu para elas despindo-se de preconceitos literários e ideológicos, tratou-as com a seriedade e o respeito que mereciam, pois ao invés de produzir um texto reducionista, com linguagem débil, infantilizada, optou por escrever sem medo de usar palavras, de inventar, de recriar aquilo que estava estabelecido. 

 

Numa época em que a maioria da população brasileira vivia na zona rural e que a escolarização não atingia a todos, a literatura lobateana foi o rádio, os programas matinais de TV, os videogames, o computador e a internet de algumas gerações do passado. Hoje talvez seja preciso fazer o caminho inverso, ou seja, partir da televisão, da internet para o livro. É bom ponderar que tanto os internautas mirins de hoje quanto os leitores daquelas primeiras décadas de publicação da obra representavam apenas uma parcela da população brasileira.

 

Muita coisa mudou em nossa sociedade desde Lobato, entretanto, é momento de se perguntar se as idéias dele tiveram resultado em nosso país. Se analisarmos a evolução da literatura destinada a crianças no país, não restará a menor dúvida. Não são poucos os escritores que, hoje, são tão conhecidos quanto Lobato em sua época, dos quais podemos destacar Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Ziraldo, além de Clarice Lispector que teve uma pequena incursão pela literatura infantil.

 

Lobato escreveu para adultos e para crianças e talvez tenha sido referência para várias gerações de escritores que escreveram para essas faixas etárias distintas de leitores como, por exemplo, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos. Essa é uma das singularidades de nossa literatura infanto-juvenil: ter escritores que não se intimidam e não têm preconceito em relação à escrita para esse público. Isso não é de certa forma continuar as idéias de Monteiro Lobato?  Escrever para crianças não é demérito para nenhum escritor, essa é uma das mais fortes mensagens de Lobato e que perdura ainda hoje em nossa sociedade.   

 

Mas o que declaram crianças que leram Lobato nos anos 20, 30 e 40 do século passado? A começar por Clarice Lispector que em seu conto Felicidade Clandestina conduz o leitor a desejar com a narradora possuir Reinações de Narizinho.

 

O conto se passa no Recife, lugar onde Clarice vivera sua infância. Percorre a narrativa um clima de suspense e ansiedade vivida pela personagem narradora para conseguir o livro de Monteiro Lobato que sua amiga, filha de um dono de livraria, possui, mas não o lê e, ainda, alimenta-a constantemente com a promessa de que o emprestará:

 

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente fora de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.  *

 

A narrativa de Clarice oferece-nos um pouco da dimensão do que era o livro de Lobato para a imaginação das crianças àquela época. Assim, a filha do livreiro chantageia a outra que, dia-a-dia, comparece ao seu portão, mas ela sempre inventa uma desculpa para não emprestá-lo, até que houve a intervenção da mãe que descobre a maldade da filha e obriga-a emprestá-lo imediatamente à narradora que, diante de As reinações de Narizinho, declara:

 

Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito.

 

O conto de Clarice Lispector não é propriamente um conto para criança, nem a autora se dizia escritora de literatura infantil, mas ela escreveu livros infantis, dentre eles:

 

- O mistério do coelho pensante

- A Mulher que matou os peixes

- A vida íntima de Laura

- Quase verdade

- Como nasceram as estrelas

 

Não se pode afirmar diretamente a influência de Lobato na obra de Clarice, mas podemos intuir que a imaginação da menina Clarice foi instigada pela fértil leitura que ela fez de Lobato em sua infância.

 

Mais adiante, na década de 30 do século passado, nasceram dois dos maiores expoentes da literatura infantil atual do Brasil, Ruth Rocha e Ziraldo. Esses escritores já “confessaram” as leituras que faziam de Lobato na infância e a irreverência e forma de narrar com fluidez, a irreverência de suas personagens e a tessitura verbal pujante.

 

Ruth Rocha já declarou “sei lá quantas vezes li Lobato. Li tanto, que já sei de cor...” **. Aliás, Marcelo, a personagem do livro Marcelo, Marmelo, martelo e outras histórias, é meio Emília na sua maneira de inquirir a respeito do mundo, do que está estabelecido... Tem um pouco do tom da boneca de pano lobateana:

 

_Papai, por que é que mesa chama mesa?

_Ah, Marcelo, vem do latim.

_Puxa, papai, do latim? E latim é língua de cachorro? ***

 

O menino não se conforma com a chamada “arbitrariedade do signo lingüístico”, ou seja, por que cadeira se chama cadeira? E não poderia chamar mesa, por exemplo? Ruth sabe percorrer o universo infantil e dar vida aos questionamentos que surgem nessa fase da vida e, o melhor, não o faz como um adulto que olha a criança de cima, ao contrário traz os questionamentos numa linguagem graciosa e bem-humorada.

 

Assim como Lobato adaptou fábulas e clássicos como Dom Quixote das Crianças, entre outros clássicos, a escritora Ruth Rocha adapta obras da literatura universal para o público infantil, como o que fez com fábulas de Esopo e A Odisséia, de Homero.

    

Ainda na década de 30, do interior das Minas Gerais para todo o Brasil, surgiu um menino, suas histórias e desenhos. Talvez esse mineiro seja um dos autores mais conhecidos em nosso país. Seu nome está associado a histórias bem escritas, cuja pincelada de humor se mistura quase sempre com um matiz de ternura. Seu nome é referência na composição de qualquer acervo para crianças.

 

Além do traço inconfundível na ilustração das histórias que escreve. Sua ilustração não cansa o leitor, ao contrário, instiga-o a observar mais, a ler melhor o texto como um todo, como é o caso de O menino maluquinho. Neste livro, o texto e a ilustração têm um dinamismo, uma cumplicidade difícil de encontrar na maioria das obras direcionadas ao público infantil.  A geração de escritores que está se formando no Brasil neste momento, com certeza, terá em Ziraldo uma de suas referências de como narrar para crianças.

 

Em O menino maluquinho, Ziraldo resgata um pouco de cada um de nós, nossos problemas existenciais de crescimento sem, entretanto, transformar isso num dramalhão. A linguagem e as imagens iniciais da obra são ousadas, estimulam o leitor a buscar a próxima página:

 

Era uma vez um menino maluquinho.

Ele tinha o olho maior do que a barriga

tinha fogo no rabo ****

 

Ziraldo, assim como Lobato, não tem medo de ir à fala coloquial e buscar expressões que são muito comuns na fala diária e transformá-la numa escrita graciosa, envolvente. O menino de Ziraldo é tão espevitado quanto Emília, entretanto, parece mais doce, mais humano, ou melhor, o Maluquinho alia a racionalidade de Emília com as fragilidades humanas.   

 

Na década de 40, no Rio de Janeiro, nasceu Ana Maria Machado, leitora confessa de Lobato na infância. Em 2000 recebeu o prêmio Hans Christian Andersen, espécie de Nobel da Literatura Infantil. Atualmente é membro da Academia Brasileira de Letras.

 

Ana Maria, assim como Lobato e os demais escritores aqui mencionados, escreve para crianças e adultos. Sua obra para crianças traz personagens que nos ajudam a ver com olhos novos questões cotidianas que permeiam nossa rotina, nossa existência.

 

O preconceito racial, por exemplo, foi abordado sem causar menor prejuízo ao aspecto literário na obra Menina bonita do laço de fita. Ana Maria tem a capacidade de inverter o foco da problemática, ou seja, uma questão difícil e essencial como essa para o nosso país, a escritora constrói uma narrativa lírica, bem-humorada, cujas personagens principais são um coelho branco que se apaixona pela cor de uma menina pretinha:  

 

Era uma vez uma menina linda, linda.

Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes.

Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite.

A pele era escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva. *****

 

Com graça e sutileza, a autora aborda a questão racial com naturalidade e leva o leitor a sucumbir diante da beleza da Menina. Transporta-o à beleza vinda da África. E, ao mesmo tempo, encontra uma solução para auxiliar o desejo do coelho.

 

Não é possível afirmar categoricamente que Lobato influenciou esta ou aquela obra dos autores citados, entretanto, não se pode negar que eles mantêm características que nos remetem a personagens lobateanas, principalmente à irreverência de Emília.

 

Os ideais de Lobato germinaram no solo do Brasil e estamos colhendo uma safra muito boa de escritores que, como ele, acreditam na criança e oferecem-lhe sempre a melhor história, a melhor ilustração. Você, Lobato, tem nos mostrado ao longo dos anos a importância de se pensar na infância, de se cuidar dela como a base para um país melhor.

 

 

 

*Felicidade Clandestina in O primeiro beijo e outros contos, Ática, 1995. 

** Vozes do Tempo de Lobato. Paulo Dantas (org), Traço Editora, 1982. 

***Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. Salamandra,1999.

****O menino maluquinho.Melhoramentos, 1992.

***** Menina bonita do laço de fita. Ática, 1997.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.