OBRAS RARAS


EXPERIÊNCIAS DE UM CATALOGADOR DE LIVROS RAROS - II

No mês passado iniciamos o relato da saga de David Whitesell, bibliotecário de livros raros da Harvard University, cujas descobertas sobre a obra do poeta nicaraguense Rubén Darío revelaram novidades ao mundo acadêmico. Seu achado começou com uma simples curiosidade, ao olhar uma encadernação e abrir o livro. Continuou com detalhada pesquisa a fim de averiguar se a letra encontrada nos manuscritos era do poeta. E o levou a esclarecer mais do que poderia supor no dia em que simplesmente abriu um livro aleatoriamente.

 

A fim de continuar sua pesquisa sobre os livros de Rubén Darío em Harvard, Whitesell visitou os arquivos da universidade com o objetivo de ler correspondência relativa ao período da data de aquisição carimbada nos livros encontrados: 11 Sept. 1916, quando a coleção chegou à biblioteca, vendida pela Librería Joaquín Medinilla. Eram 200 páginas datilografadas listando milhares de livros oferecidos à Harvard. Por várias semanas, e além do trabalho diário, o bibliotecário leu lista após lista, sem nada encontrar, até que seus olhos avistaram um título conhecido: “Eglantinas”, de Pedro Naón, o primeiro livro citado no relato no mês passado. Em anotações antigas, Whitesell pode ler que o experiente livreiro havia descrito as anotações manuscritas como sendo de Darío.

 

Ao longo de meses o bibliotecário encontrou 40 livros, todos identificados com certeza como sendo pertencentes à biblioteca particular do poeta, fosse através da dedicatória, da encadernação em couro vermelho (claramente feita pelo mesmo encadernador, na mesma época), ou das anotações manuscritas de Darío.

 

Interessante notar que Whitesell encontrou um livro com dedicatória ao poeta, encadernado em couro vermelho com as mesmas características dos demais, e carimbado 11 Sept. 1916, mas que não constava das listas de Medillina. Um mistério a ser resolvido. Harvard teria perdido alguma listagem e, nesse caso, mais livros poderiam ainda existir na biblioteca?

 

O poeta morreu na Nicarágua em 6 de fevereiro de 1916. Menos de três meses depois o livreiro de Madri ofereceu à universidade pelo menos 66 de seus livros. De onde vieram esses livros? Descobriu-se que a origem era Francisca Sánches, companheira e mãe de seu filho, cuja situação financeira era desesperadora.

 

Mas havia, igualmente, livros das listagens do livreiro não adquiridos pela universidade, e que dificilmente hoje poderiam ser encontrados. Em visita à New York Public Library e armado com uma lista de 23 livros “perdidos”, o bibliotecário conseguiu localizar três ou quatro que haviam pertencido à Darío. Dois, aparentemente, nunca tinham sido oferecidos à Harvard.

 

Nessa etapa da pesquisa, Whitesell não poderia imaginar que ainda encontraria outro poema inédito. Encontrou. No livro “En wagon”, uma peça francesa de Eugène Verconsin publicada em Paris, em 1899, pedaços de um poema surgiram, sem revisão, mas com seu característico toque.

 

Enfim, poderíamos seguir contando como a vida de um catalogador de livros raros pode ser interessante e rica, e falar dos livros raros, essas peças cheias de surpresas, valiosas pelo conteúdo, mas também por sua forma, como um objeto de museu, ponto de partida de vários estudos e descrições de como livros são impressos, encadernados, marcados e utilizados.

 

A biblioteca particular de Rubén Darío praticamente não foi mencionada nos milhares de livros e artigos escritos sobre o escritor, considerado o pai da poesia espanhola moderna. Agora, quase um século após sua morte, e graças a um bibliotecário interessado, sabe-se muito mais a respeito do escritor e seus livros.

 

Até a próxima!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.