OBRAS RARAS


PARCERIA PERFEITA EM DOIS TEMPOS - II

Rubem Alves certa feita escreveu uma simpática crônica sobre a beleza do jogo de frescobol, fazendo um paralelo com os tipos de relacionamento. Nela, ele dizia que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. " Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha." Um bom exemplo desse jogo, figurativamente falando, se encontra no texto do mês passado, que aborda a vida profissional de Cristina Antunes trabalhando na Biblioteca de Guita e José Mindlin, a melhor biblioteca particular de livros raros no Brasil.

O tema desse mês é o último livro de José Mindlin. Falar bem dele (pessoa, não do livro) sem pecar por omissão é impossível. É das poucas pessoas em que a frase de Nelson Rodrigues "toda unanimidade é burra" não se aplica. É querido de todos e todas, e um exemplo profissional como poucos. Vou então tentar me deter apenas no "Memórias Esparsas de uma Biblioteca", da Coleção Memória do Livro, lançada pela Escritório do Livro/Impressão Oficial recentemente e em conjunto com "Memórias de uma Guardadora de Livros". Nele, o entrevistado nos passeia mais uma vez pelos caminhos aprazíveis do livro raro sob o prisma do colecionador que conviveu com os mais importantes nomes da cultura brasileira no século 20, e formou uma coleção de fazer inveja a instituições nacionais e estrangeiras. Muita garimpagem em sebos e livrarias, um conhecimento profundo do assunto e alguma sorte levaram ao bibliófilo o acervo único. Há que se louvar a iniciativa da editora Dorothée de Bruchard, num campo em que abunda escassez - se isso é possível - de vontade política e verba.

O lançamento editorial da primavera desse 2004 privilegia aspectos da história do livro no Brasil menos conhecidos do público de livros raros, em geral acostumados a livros antigos. Bibliófilos e editores amigos, tipografias alternativas e livreiros no Brasil e no exterior, mostram um universo repleto de histórias interessantes que eu, pelo menos, não me canso de ler. Só por isso o livro seria leitura indispensável (como se o prazer de "ouví-lo", por si só, não bastasse). Desde a amizade com o bibliógrafo e também bibliófilo Rubens Borba de Moraes, de quem herdou a biblioteca, passando pela poeta e bibliotecária Zila Mamede, pelo embaixador João Cabral de Melo Neto, todos os relatos deixam o sabor agradável daquele que sabe extrair o que pessoas e acontecimentos têm de melhor. "Tenho saudades do tempo em que as idas às livrarias não eram só motivo de boas compras mas, acima de tudo, de bons papos".

As três Graças (vou deixar vocês lerem), Sergio e Marivalda, a esposa e companheira de vida, grande incentivadora e conservadora da biblioteca Guita Mindlin, e todos que auxiliaram de alguma maneira a organização do acervo também aparecem no relato daquele que não se esquece de ninguém. Histórias e mais histórias, assim como nos conta em Uma Vida entre Livros, seu outro livro, nos dá certeza de uma vida plena de realizações. Ou quase. Como ele diz, precisaria viver mais uns muitos anos para poder ler toda a sua biblioteca. Quem sabe?

O volume ainda contém um apêndice no final, O Livro no Brasil: bibliotecas e tipografia, relatando uma história resumida do livro desde os tempos coloniais até os nossos dias, no Rio de Janeiro e em outros estados.

Mindlin editor de cerca de trinta e cinco livros, autor, doutor (como advogado e por prêmios), fazedor de política cultural, empresário, bibliófilo, amigo. Uma pessoa que cresceu entre quadros e livros, soube aproveitar os ensinamentos e oportunidades, e reconhece a biblioteca como parte de sua vida. Ou, como prefere dizer Guita: "não somos nós que temos a Biblioteca, ela é que nos tem." Quem já visitou sabe dos prazeres a ela associados. E quem conhece Mindlin, ainda que pouco, sabe de quem falo. [Quando ler essa singelíssima homenagem, já sei que falará: "custei a crer que os elogios eram para mim, mas depois de ler meu nome tantas vezes, acabei me convencendo de que era eu, mesmo"].

Sua coleção, ou parte dela, um dia deverá estar à disposição em prédio da Universidade de São Paulo. Que possam alguns felizardos concretizar o desejo desse que leu de sete a oito mil volumes de sua biblioteca durante seus 90 anos e dois meses de existência (até agora). "Sei que daqui por diante não poderão ser muito mais, mas não perco o sono por isso. Outros lerão os livros que não li."

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.