OBRAS RARAS


FREI VELLOSO, UM RELIGIOSO AMANTE DE PLANTAS E LIVROS

A Carta de Caminha é o primeiro documento que descreve a beleza e algumas plantas brasileiras, mas a fauna e a flora brasileiras começaram a aparecer em forma impressa principalmente a partir do período holandês, em meados do século 17. Depois disso, foi somente no final do século 18 que novas publicações surgiram, sendo a importância das plantas do Brasil para a Medicina somente divulgada amplamente no século 19. Frei Velloso e o baiano Alexandre Rodrigues Ferreira são os grandes destaques nacionais do final do século 18. Vamos falar do primeiro.

O botânico e naturalista mineiro José Velloso Xavier, primo de Tiradentes (que, segundo consta, estudou com o botânico o uso de ervas para fins de saúde, em geral, indo além da "Odontologia"), nasceu em 1742 e foi ordenado no Convento de Santo Antonio no Rio de Janeiro, tendo estudado Teologia, Filosofia, Botânica e Geometria, entre outros. Foi pregador, professor, tradutor, trabalhou na conversão dos Índios Tamoios, exerceu vários cargos, mas era na História Natural que mais colocava sua alma de pesquisador. A cela ocupada no Convento do Rio transformou-se num herbário nos anos em que viveu naquela cidade, tanto que Frei Velloso teve permissão do vice-rei Luiz de Vasconcellos para livremente se ocupar da tarefa de identificação de plantas, mesmo que isso envolvesse viagens, várias e longas, no estado do Rio de Janeiro, na região do Paraíba do Sul. Nessas viagens, durante aproximadamente sete anos, era acompanhado por dois outros fadres: Frei Francisco Solano (desenhista) e Frei Anastácio de Santa Inez (secretário). Com isso, ele pôde descrever, e mais tarde publicar em Portugal, sua mais importante obra, a Florae Fluminensis, falha na coleção da John Carter Brown Library, e referência para todos os naturalistas e botânicos europeus, graças a inéditas descrições das espécies naturais segundo o sistema de Carlos Lineu - sueco que elaborou um sistema de classificação das coisas naturais no século XVIII.

Frei Velloso, em sua Florae Fluminensis, talvez tenha sido a primeira pessoa a falar de espécies de plantas que poderiam ser utilizadas na fabricação do papel. Sei que o Museu Imperial possui uma mostra do primeiro papel produzido no Brasil, logo após a independência, mas não recordo se esse papel foi feito por, ou a partir do conhecimento do frade.

Sua ida para Lisboa em 1790 o aproximou do então príncipe regente D. João VI, com quem mais tarde voltaria ao Brasil em 1808. Em Portugal, como nos conta Borba de Moraes, sob os auspícios do rei e de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Frei Velloso traduziu e publicou livros estrangeiros relacionados às Artes, Indústria e Agricultura, primeiramente como editor em várias outras oficinas tipográficas, e mais tarde como diretor literário (juntamente com Hipólito José da Costa, outro nome de destaque na História do Brasil) na Typographia Chalcographica, Typoplastica e Litteraria do Arco do Cego, que se incorporaria à Imprensa Régia portuguesa em 1801. O objetivo dessas publicações visava o melhoramento da economia rural e das fábricas brasileiras. O frade também empregou vários brasileiros que se tornariam famosos mais tarde, como Hipólito José da Costa, já citado, e os gravadores que introduziriam a arte no Brasil em 1808, Romão Eloy e Ferreira Souto.

Apesar do pouco tempo de existência da Casa Literária do Arco do Cego (menos de 2 anos), Frei José Mariano da Conceição Velloso editou quase 90 títulos, principalmente divulgando as Ciências Naturais. A John Carter Brown possui várias dessas publicações, e recentemente adquiriu o Decreto da Instituição da Nova Junta, quando da incorporação da oficina do Arco do Cego à Imprensa Régia, "querendo animar o estabelecimento da Impressão Regia". Achou por bem o Príncipe Regente nomear Frei Velloso e Hipólito José da Costa diretores literários da Imprensa Régia portuguesa, com a recomendação de que continuassem a imprimir as obras de que se achava encarregada a oficina do Arco do Cego, principalmente as de Botânica, além das publicações oficiais. Sem dúvida uma boa forma de promover e incrementar a tipografia oficial, cuja produção editorial não se sobrepõe à brasileira na época: em 14 anos (de 1808 até a independência do Brasil em 1822), a Imprensa Régia brasileira publicou mais do que a portuguesa nos primeiros 32 anos de existência.

Ainda segunda Borba de Moraes, infelizmente os livros publicados por Frei Velloso, principalmente O Fazendeiro do Brasil (outra obra de grande relevância do naturalista), não foram de muita utilidade no Brasil. O atraso do país era grande, os donos de terra não tinham preparo, não havia escolas, livrarias, ou distribuição comercial de livros. Ao que parece, as publicações foram até mesmo doadas para as capitanias, sem muito resultado prático, com exceção dos produtores de cana-de-açúcar da Bahia e de Pernambuco. Em O Fazendeiro, o religioso já falava em reforma agrária e desmatamento. Essa obra, felizmente presente nas estantes da JCB, é considerada um marco na história econômica brasileira.

O famoso mineiro morreu em 1811 no Rio de Janeiro, com 71 anos. Como disse Saldanha da Gama, reproduzido em Sacramento Blake: sua vida foi "uma série de assignalados serviços às sciencias e de virtudes christãs que garantem a perpetuidade de seu nome nas paginas de nossa historia". Sua biblioteca, com livros, manuscritos, etc. foi doada posteriormente à Biblioteca Nacional.

O que Frei Velloso não poderia jamais imaginar é que, no início do milênio seguinte, a religiosidade associada a seu bom nome fosse aparecer de outra forma: pesquisar numa tal de internet por "frei velloso" hoje pode levar o pesquisador também a uma Oficina Esotérica.

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.