OBRAS RARAS


MATERIALIDADE DE LIVROS - IV

Um dos exemplos de materialidade de livros e textos que podemos destacar encontra-se em alguns documentos que compõem a coleção do Código Brasiliense da John Carter Brown Library (e, acredito, o mesmo se passa com esses documentos em outras bibliotecas).

Em 2000 a JCB iniciou a catalogação de sua cópia do Código Brasiliense, com documentos aparentemente impressos no Rio de Janeiro em 1808, e de outros exemplares dessas leis, decretos, etc. não encadernados, com características tipográficas diferentes, cujo lugar de publicação havia sido previamente estabelecido como sendo Lisboa.

Os 3 volumes do Código foram adquiridos em 1970 graças ao Fundo Wormser, uma das muitas fontes de aquisição de acervo da biblioteca, mas ainda não sabemos, por falta de comparação com outros exemplares, se apenas a nossa coleção foi composta por documentos tão diferentes entre si, tipograficamente falando.

Como se sabe, tanto o Rio de Janeiro quanto Lisboa tinham ambas uma Imprensa Régia no mesmo período (sendo a portuguesa, evidentemente, mais antiga). O estabelecimento de Lisboa como lugar de impressão para as cópias não encadernadas foi baseado em diferenças nos tipos móveis utilizados, e particularmente em diferenças na capital inicial E (cortada em madeira) em alguns documentos; contou-se igualmente com informações presentes na documentação arquivística. O bibliógrafo Stephen Ferguson, responsável pelo tratamento técnico da coleção na época, deixou um documento interno detalhando os motivos da escolha de Lisboa como lugar de publicação dos itens avulsos. Ferguson também notou variações entre as iniciais E dos documentos da Impressão Régia do Rio de Janeiro. A biblioteca manteve correspondência com várias instituições na ocasião da compra na tentativa de compreender que impressões eram aquelas, como elas variavam, e onde haviam mesmo sido publicadas. Não houve conclusão definitiva a respeito.

No primeiro ano de impressão no Brasil foram identificados três tipos de inicial E até agora, dois dos quais abaixo reproduzidos. As dúvidas são muitas: as letras em madeira foram esculpidas no Rio de Janeiro ou foram trazidas de Portugal? Quase arrisco dizer que foram esculpidas no Rio, pois a imitação é grosseira, de qualidade inferior à esculpida em Portugal. Vieram os tipos da Europa, mas não as iniciais em madeira? Havia tipos móveis sobreviventes no Brasil quando da chegada da família real? Quem esculpiu as letras para a Coroa? Os tipos utilizados eram apenas os ingleses? Enfim, várias são as perguntas que podem ser feitas, a grande maioria ainda sem reposta definitiva - se é que um dia as teremos. E aqui estamos falando apenas do ano de 1808.



Inicial de um documento impresso em 1808 no Rio de Janeiro

Inicial de um documento impresso em 1808 em Lisboa

 

Há anos atrás a John Carter Brown Library recebeu um pesquisador, professor de História do Livro em universidade mexicana, cujo objeto de estudo foi comparar temas e desenhos das iniciais de documentos mexicanos e peruanos do período colonial com outras de documentos espanhóis, a fim de determinar quais iniciais teriam vindo da Espanha para a América, quais teriam sido confeccionadas no nosso continente, e qual a relação entre elas na época da renascença européia. No período colonial, quando o desenvolvimento de produtos não era permitido, tudo precisava ser importado: papel, tipos, prensa, etc., embora haja casos, como o do Paraguai, em que os jesuítas ensinaram os índios a arte de imprimir em blocos de madeira. (Aliás, sempre que falo sobre esse assunto penso em como a colonização portuguesa no Brasil foi diferente de outras, até mesmo das próprias colonizações portuguesas na África, Ásia e Índia, para onde os jesuítas levaram a tipografia no século XVI). Voltando: no Novo Mundo espanhol do século XVI, terra selvagem (ou território virgem, se preferirem), os ajustes tinham de ser feitos devido à quase inexistência de gravadores, pessoas para confeccionar tipos, prensas, e outros profissionais envolvidos na arte. No caso espanhol, havia tradição no uso de metais, madeira e pedras por artistas nativos, eventualmente colocados à disposição da Coroa para a confecção de livros. E no Brasil? E-mails para esta colunista, por favor. (Aliás #2, um dia quero falar do Frei Velloso, meio a propósito desse assunto). Pra terminar: uma das descobertas do pesquisador da JCB foi a similaridade em iniciais de um determinado tipógrafo da América cujos motivos e desenhos mostram influência das renascenças italiana e francesa nos impressos mexicanos.

Já estou arrependida de ter escolhido o exemplo acima, que me parece muito melhor do que o artigo, mas agora é tarde.

Estudos semelhantes poderiam provavelmente ser feitos com livros impressos no Brasil, já pelos 1800s. Com relação à inicial E e aos tipos utilizados para a publicação dos primeiros impressos brasileiros, há ainda comparações e pesquisas a serem feitas para que se tenha análise precisa do documento enquanto objeto físico, levando em conta também outros fatores, como origem e qualidade do papel utilizado, diferenças nos layouts das diversas tiragens, inúmeros tipos móveis utilizados, etc.

O presente é o quarto e último artigo da série que dá nome ao título.

Acho.

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.