OBRAS RARAS


MATERIALIDADE DE LIVROS - III

...e a história está repleta de casos de edições inteiras sobre o Brasil suprimidas pelo governo português logo após a publicação. Eis mais um caso de livro "desmaterializado".

Cultura, e opulencia do Brasil por suas drogas, e minas ..., de André João Antonil, (Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711). Seis exemplares no mundo, ao que parece, todos em bibliotecas. O jesuíta italiano nascido João Antonio Andreoni (que, graças ao padre Antonio Vieira, se mudou pro Brasil) foi das primeiras pessoas a descrever minuciosamente as minas de ouro, no momento em que paulistas e emboabas (palavra tupi-guarani que quer dizer estrangeiro, forasteiro, no caso portugueses e outros vindos de várias regiões do Brasil atrás de pedras preciosas) lutavam pela posse das riquezas das Gerais. Dividido em quatro partes, foi sobre esse assunto que o autor mais se deteve; e deve ter sido pela mesma razão que o livro foi confiscado. As outras três partes são sobre o tabaco, o açúcar e os pastos.

Já que estou falando do Antonil, vou aproveitar para contar a história da aquisição do Cultura e opulencia pela JCB. Para os que acreditam em coincidência, é uma boa historinha.

O Board of Governors (Conselho) da biblioteca estava em Paris em outubro de 2002 para uma reunião que nunca acontece lá, mas como um dos membros é francês, dessa vez foi organizada uma semana de atividades culturais na França que incluía, além da reunião anual, uma visita à Bibliothèque National. Para receber a ilustre comitiva, a biblioteca nacional européia montou uma exposição muito simpática com todos os livros que a JCB não possui e mais deseja, baseada no catálogo Rare Americana: one hundred and one books NOT in the John Carter Brown Library, publicado em 1974, no qual consta o Antonil. Ao ver o exemplar da BN francesa, o diretor da JCB lamentou com a curadora que aquela (o Antonil) era uma grande lacuna no acervo da biblioteca americana. Ao final da visita ela, por sua vez, comentou que um exemplar em perfeito estado físico tinha acabado de sair de Paris para ser leiloado em Londres no mês seguinte. Isso era quase inimaginável no mercado livreiro internacional. Bem, no mês seguinte, a biblioteca participou do leilão e acabou por adquirir o livro. Apesar de uma certa tristeza pelo fato de o livro não ter ido pro Brasil (que possui 2 cópias, uma na BN, no Rio, e outra na USP), a catalogadora da JCB não nega a satisfação no manuseio, trato e exibição eventual da peça rara. Então, se o diretor não tivesse ido à reunião na França por algum motivo, ou não tivesse ido à exposição citada; se não tivesse comentado, ou se tivesse comentado com outra pessoa sobre o Antonil, e mesmo se todo o conselho da biblioteca não estivesse lá para votar a favor da participação no leilão, talvez a JCB continuasse com o livro apenas em sua publicação desideratu. Por "coincidência", a curadora da exposição é a mesma pessoa que autoriza a saída de patrimônio para outros países, de acordo com as leis francesas.

Evitar que as nossas riquezas fossem descobertas e com isso despertassem a cobiça alheia parece ter sido o motivo principal da destruição de alguns livros sobre o Brasil ao longo dos séculos. Na coluna do mês passado citamos os livros do Gândavo (1576) e do Brito (1732), e agora o livro do Antonil, todos suprimidos pelo governo português logo após a publicação. Quem ficaria, pois, surpreso, ao saber que a carta de Caminha, nosso primeiro documento, escrito em 1500, exaltando as belezas da terra, foi publicada pela primeira vez em nota (ocupando apenas 23 páginas) no livro de 420 páginas Corografia brazilica do padre Manuel Ayres de Casal (Rio de Janeiro: Impressão Régia, em 1817)? Às vezes penso na história do Brasil como a de um país que luta para crescer e se projetar até hoje, mais de 500 anos depois de descoberto, apesar de ainda ter suas riquezas dilapidadas e entregues ao capital estrangeiro.

"Desmaterialização" foi o termo que usei para exemplificar livros que se materializaram no tempo e se tornaram raros por sua quase inexistência. Voltando à concepção original de materialidade de livros e textos, veremos no próximo mês um caso oficial brasileiro, para fechar esse ciclo que se iniciou com a exposição "Materiality of Books" na Library Company of Philadelphia.

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.