COTIDIANO INFORMACIONAL


#VAIDARCERTO - A TAG DE UM SINTOMA

É comum ouvir na rua ou ler em postagens na internet alguém dizer: vai dar certo. As inúmeras crises que assolam o mundo têm levado, gradativamente, populações cada vez maiores ao adoecimento. É provável até que estados de depressão, crises de ansiedade e pânico ou burnout, por exemplo, ocupem no século XXI a mesma zona que a histeria ocupou no século XIX, caracterizando o contexto sociopsíquico da contemporaneidade.

Tenho percebido que a frase vai dar certo costuma ser evocada para, em situações difíceis, como uma espécie de mantra, oferecer um alívio fugaz e raso às insatisfações rotineiras, considerando o tom inexpressivo que a sua infinita repetição adquiriu no cotidiano; ou, ainda, para “canalizar energias positivas”, as famosas good vibes, que funcionam como uma essência sedativa para ajudar no combate aos entraves do dia a dia; e, quem sabe, forçando um pouco, pode até ser potência, declarando algum tipo de “resistência semiológica” ao real (ou seja, para confrontar a negatividade do real, digo: #vaidarcerto, conferindo-lhe uma positividade fantasmagórica).

Recorrendo ao termo sintoma, no entanto, busco situar este texto num domínio mais específico, para além da ideia de doença a ser diagnosticada por um especialista (como “enunciados fisiológicos” que somente um médico está autorizado a interpretar e dar significação). Trato, aqui, sobre o seu sentido no campo psicanalítico, assim sendo, como aquilo que só pode ser compreendido se se levar em conta o sujeito e sua história - pois, abrange fatores que extrapolam a natureza física do ser humano. Isto pressupõe considerar que o sujeito não se constitui sozinho; sua inserção no mundo se dá pela via do social, razão pela qual é aceitável falar em sintoma enquanto algo que pode alcançar parte do conteúdo de uma experiência comum, generalizada.

Dito isso, acredito que agora posso avançar um pouco mais sobre a questão que me trouxe até aqui. Simplificando: qual a relação entre sintoma e o "vai dar certo"? Minha preocupação não recai sobre o enunciado em si, mas repousa, antes, no contexto desvelado por ele. O vai dar certo se sustenta exatamente porque, até agora, o real vivido ainda não deu certo. Talvez, este seja um sintoma, já que o vai dar certo exprime - sob a minha ótica, claro - o desencontro, individual e coletivo, entre o que se vive e o que se deseja viver, isto é, um desequilíbrio entre o que é vivido hoje e a expectativa acerca do que será vivido amanhã.

Como disse anteriormente, sintoma remete ao sujeito e sua história, por conseguinte, localiza-se tanto no plano da interioridade, como da exterioridade (ou, em termos sociológicos, no território do Eu e do Nós). Nesse sentido, desassossega perceber que o modus vivendi da contemporaneidade ruma para o insustentável à medida em que a realidade tem sido guiada, cada vez mais, por uma lógica que atribui ao mercado um perigoso poder regulador sobre a vida (num nítido exemplo de exercício do biopoder foucaultiano).

Assim, como já destacou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, há uma constante “pressão pelo desempenho”, onde o sujeito é radicalmente “empreendedor de si”, sendo o principal responsável pelo sucesso ou fracasso de sua sobrevivência física e psíquica (muitas vezes, impedido de recorrer ao Estado). O vai dar certo oculta o risco do excesso de positividade da autoexploração por detrás da conformação de uma Sociedade do Desempenho, na qual sobra espaço à produção, enquanto falta ao "erro" - visto como uma ação interdita, fadada a integrar tão somente o plano da negatividade.

Apesar da expressão utilizada por Byung-Chul Han adicionar elementos novos ao debate, creio que o objetivo principal do autor não seja atribuir mais um nome à sociedade contemporânea, e sim ressaltar características suas fortemente apoiadas num modelo laissez-faire. Ora, quanto mais cresce o número de pobres e famintos no mundo, mais “fragilizados” ficam os sujeitos e seus laços, reforçando a experiência da "vida nua". Num ritmo acelerado, direitos e garantias sociais são solapadas, tornando impossível ser “forte” quando se vive num mundo onde há efetiva desregulamentação do Estado e dos serviços de cuidados prestados aos cidadãos. 

É, talvez, no ímpeto de desejar "fé" ou “esperança” que as pessoas digam umas às outras que vai dar certo. Mas, até então, apenas tem dado certo para quem pratica a necropolítica defendendo, num cinismo implacável, o lucro acima da vida. Isso me faz recordar de um ensaio do camaronês Achille Mbembe, notável por sua análise acerca de um biopoder instrumentalizado para promover um Estado que abandona, discrimina e mata, sem remorso, sua própria população.

Sem dúvida, o Brasil será lembrado como um país em que a prática da necropolítica só se intensificou depois da pandemia de Covid-19, demonstrando os contornos de um projeto político funesto, implementado através de uma gestão deliberadamente injusta e perversa. Em meio a uma crise sanitária sem precedentes, o propalado “novo normal” parece ratificar o compromisso com uma conditio inhumana estruturada há tempos à base da exceção (que concede ao soberano - nesse caso, o Estado e o mercado - o poder de decidir sobre quem deixar viver ou fazer morrer - na esteira de Giorgio Agamben).

Espero estar completamente equivocado, porém noto que a sociedade continua a preservar o mesmo caráter nocivo do laço pré-pandemia. Assim, longe de apresentar alguma novidade, tenho a impressão de que o “novo normal” apenas remete à continuidade - ou, quiçá, a uma degeneração ainda maior - do laço já existente. Os efeitos diretos, paralelos e transversais dessa necropolítica, em todo o imenso espectro de incertezas que ela acarreta quanto ao futuro, podem ser apontados, portanto, como sintoma do nosso mal-estar contemporâneo. Desse modo, o vai dar certo apenas fornece o frame ideal para escamotear o objetivo final da biopolítica, que é, sendo um tanto realista, alcançar justamente o oposto.


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JEFFERSON VERAS NUNES

Mestre em Sociologia pela UFC, doutor em Ciência da Informação pela UNESP e professor do Departamento de Ciência da Informação da UFC