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A BARBÁRIE AFEGÃ

Confesso, sem pudor, que pouco sei ou quase nada sei acerca da geopolítica do Afeganistão, país no centro da Ásia e encruzilhada entre o Sul da Ásia, Ásia Central e Ásia Ocidental, ocupando importante localização geoestratégica ao ligar o Oriente Médio à Ásia Central e ao subcontinente indiano. Predominantemente montanhoso, com planícies que se estendem em seu norte e sudoeste, não possui litoral, destacando-se por sua área geográfica – 652.230km² – o que o posiciona como a 41a maior nação do mundo em extensão. Limita-se com o Paquistão, ao sul e ao leste; com o Irã, ao oeste; com Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão, ao norte; e com a China, ao nordeste.

Com população estimada de 32.225.560 habitantes, é o 37o país mais populoso do mundo, cuja capital Cabul é “disparada” a maior cidade afegã, com milhões de cidadãos, distribuídos em diferentes etnias que batalham o tempo inteiro, ou melhor, a vida inteira. São os pachtuns, tajiques, hazaras e usbeques. Os primeiros constam como o grupo mais significativo, desde a adoção do termo Afeganistão, que significa “terra dos afegãos”, a partir do etnônimo “afegão, historicamente, designação para os pachtuns.

Sua história está inexoravelmente marcada por guerras, terrorismo e muito horror. Em seu território, os afegãos sobrevivem, no mínimo, desde 50.000 anos antes. Ao tempo em que serviu de habitação para vários povos através dos tempos, grupos extremistas, ênfase para o talibã, há quase 30 anos invadiu e governou o Afeganistão de 1996 até a invasão norte-americana, em 2001. Segundo a língua pashto, talibã designa estudantes e o grupo pioneiro de orientação sunita, desde 1994, reunindo ex-guerrilheiros que participaram do confronto com forças soviéticas no país, ironicamente, com o apoio dos Estados Unidos, que, depois de longos 20 anos, retira-se, agora, 31 de agosto de 2021, do solo afegão, de forma abrupta e não planejada, após a ocupação da capital Cabul pelo talibã, deixando para trás, uma população em total desespero diante do enfrentamento à dura e desumana lei islâmica.

No quesito religião, 99% dos habitantes são muçulmanos. Dentre eles, aproximadamente, 85% são seguidores do ramo sunita em contraposição a 15 ou 20% do ramo xiita, predominante entre os hazaras. Na realidade, sempre ou ainda hoje, o nome Afeganistão, de forma consciente ou inconsciente, leva cada um de nós, salvo raras exceções, a lembrar da violação constante dos direitos humanos, incluindo a pena de morte de forma arbitrária e cruel. Dentre as vítimas tradicionais do talibã estão crianças, adolescentes e mulheres. Há abuso infantil e sexual por meio da prática usual dos Bacha Bazi – escravidão sexual e prostituição infantil, quando adolescentes do sexo masculino são vendidos a homens poderosos para atividades sexuais, sem contar os casamentos forçados infligidos às meninas e a disseminada violência doméstica.

Para as mulheres, é muito difícil se instruir. A taxa de registro do chamado “crime de honra” ronda, a cada ano, o total de 250 casos, embora seja comum que as instituições forenses, além de culparem as vítimas as condenem a castigos ignóbeis. Os testes de virgindade banidos, oficialmente, em 2016, persistem e caso o resultado contrarie o esperado, as afegãs podem ser presas ou executadas. Também são perseguidos, com rigor e atrocidade, jornalistas e algumas etnias, a exemplo dos hazaras. 

E há muito mais: as formas de criminalidade vão do narcotráfico (mero dado: de 80 a 90% da heroína consumida no continente europeu provêm do ópio ali produzido) até a lavagem de dinheiro, fraudes descomunais e intensa corrupção; a histórica instabilidade política e os conflitos internos contínuos dizimam a população afegã que tende a abandonar o país na condição de refugiado, haja vista, que, em contraposição aos imigrantes, os refugiados não se deslocam por opção própria. Seguem de um lugar para outro por motivos de guerras ou perseguição em seu país de origem. Crianças e jovens, homens e mulheres, de idades indefinidas, expõem sem pudor o sofrimento de uma média de quatro a cinco dias sem comer e sem beber.

A partir de 2006, após a queda do regime talibã, a Universidade de Cabul passou a receber jovens de ambos os sexos. Mesmo assim, a alfabetização de toda a população está em torno de 40%, com diferença contrastante entre o sexo masculino (taxa de alfabetização, 51%) e o feminino, com meros 21%, não obstante o exemplo significativo de Malaia Yousafzai. Trata-se de jovem do vizinho Paquistão, que se tornou Prêmio Nobel da Paz, aos 17 anos. Vítima de um atentado por defender o direito das meninas de ir à escola em seu país, hoje, aos 23 anos, se formou na Universidade de Oxford, Inglaterra, e prossegue sua luta em prol dos pequenos.

Em que se sobressaia a relevância internacional de Malala Yousafzai, em seu valor e coragem a favor das mulheres e meninas do contíguo Paquistão, há uma infinidade de males associados ao país vizinho. Por anos a fio, ocultou e protegeu as atrocidades cometidas em nome do Al-Qaeda. Agora, após o colapso da República Islâmica do Afeganistão, em agosto de 2021, o Emirado Islâmico do Afeganistão está sob controle total do talibã, como reconhecido internacionalmente por alguns poucos países, desde o dia 15 de agosto de 2021. Soa como pesadelo: no céu distante, o corpo despenca de uma das aeronaves norte-americanas para fugir do horror. Multidões se aglomeram como boiadas, impelindo anciões, velhos, adultos, jovens, crianças e muitos bebês de colo.

Na realidade, quando me dispus a escrever sobre a barbárie afegã pesou nos meus ombros o olhar perdido dos refugiados: misto de dor, esperança e desesperança; perdão de pecados não cometidos! Em seu andar lânguido, parecem carregar o peso do mundo e, quiçá, a indefinição do amanhã. Não têm escolha. Sua vida está em mãos de governantes de países, muitos dos quais já os odeiam por virem incomodar sua vidinha para lá de confortável! O que ocorrerá com eles? Ninguém sabe a resposta! Ou talvez a ninguém interesse. Afinal, imploram nada mais do que uma oportunidade de viver e de sonhar numa sociedade civilizada. Esquecem, ou melhor, não sabem que no mundo civilizado e asséptico, não se fala de dor. Sobretudo, quando a dor é a dor do outro: de cor indefinida, feio, sujo e encardido de tanta dor.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”