VIVÊNCIAS (DES)LATTES-LIANAS


PENSAR SEM CORRIMÃO: UM RELATO DOS DESAFIOS DE UMA JORNADA ACADÊMICA

Começo falando sobre a oportunidade dada pelo meu orientador Professor Oswaldo. Na ocasião, um e-mail dele pegou-me de surpresa, assim como o convite para ser colunista do INFOhome e falar sobre as vivências acadêmicas diversas, ecoar essas vozes da vivência entre uma única jornada e os vários desafios de enfrentamento.

Primeiro, a problemática que deu a base para o nome da Coluna. Considerar as vivências do dia a dia, que se misturam com a acadêmica, aquelas intrínsecas que, se tivessem um espaço no Currículo Lattes, chamado de “Memorial da Vida Subjetiva Acadêmica”, não caberiam ali em um momento gigante de experimentações que, a meu ver, não é possível objetivar.

Continuei a refletir sobre o nome que daria à Coluna do site do INFOhome e cheguei à conclusão de que seria “Vivências (Des)Lattes-lianas”. Explico o porquê: as vivências da pós-graduação estão para além do “torço Currículo Lattes”. Nesse caso, como a coluna tem o objetivo de discutir reflexões da Pós-graduação, a meu ver a vivência é maior que as particularidades do que se impõe com a questão da cientificidade. Pensei: por que não falar das experiências que não aparecem ou são dadas como pautas alternativas? Meu orientador, o professor Oswaldo, concordou com algo que seria a minha primeira experiência.

Escolhi para refletir esse primeiro texto, o “pensar sem corrimão” da filósofa Hannah Arendt, permitindo uma reflexão introspectiva das lutas da vida cotidiana, a acadêmica, na qual às vezes nos deparamos com a solidão, a ansiedade, a frustração e o medo, principalmente quando optamos em ser a resistência e não querer somente os “corrimãos” que surgem no decorrer da vida.

Quando penso na Pós-Graduação, principalmente no strictu sensu, isto é, o mestrado e doutorado, não penso na romantização dessa prática, embora seja uma jornada fascinante, no entanto, quando você não está em um campo privilegiado, longe do capital social e econômico, os muros tornam-se infinitos e a realização fica longe de bater na porta, especialmente quando você é um jovem de periferia que sonha em um dia ser Professor Doutor/Pesquisador. Na verdade, pergunto: quantos jovens de periferia são mestres e doutores?

Pode-se pensar ser muito mais fácil e mais conveniente encontrar-se orientado ao pensamento homogêneo de uma massa de pessoas. No primeiro momento, é um “corrimão” de pessoas que se encontram sem direção e tentam segurar-se em “orientações” que muitas das vezes nada competem com sua realização. A breve reflexão conduziu-me a lembrar dos tempos de graduação e seguir a carreira acadêmica que já havia “ativado” em mim, embora não houvesse nenhum incentivo que me levasse a isso, a não ser a força de vontade dos que estavam comigo. Ainda assim, até hoje certos comentários chegam aos meus ouvidos: por que não faço logo um concurso para bibliotecário? Estuda tanto para quê? Por que você não vai logo trabalhar? (como se o mundo da pesquisa não fosse um trabalho e sim um submundo das ilusões).

Seguir realizando o contraponto mesmo sem ter alguém com experiência para me guiar. Às vezes eu conseguia, no meio da solidão, produzir resistência e confrontar o sistema hegemônico que não te deixa emancipar. Em meio às incertezas, decidi “pensar sem corrimão”, pensar sem o apoio de uma “massa dominante” que segue o padrão estipulado de sempre, por vezes até desmerece o campo da pesquisa e a ver como uma simples “formação continuada”, o previsto e previsível.

A realização acadêmica é privilégio para poucos. Vivenciamos hoje, no Brasil, o desmonte da pesquisa, da educação e a falta de incentivo aos estudos que nos é denegado. Simbolicamente, as barreiras são colocadas para privar à vontade e gradualmente ela esvaece: seja financeira, comparativa ou intelectual. Realmente, como primeiro passo, devemos pensar em como um jovem da periferia, que estudou em uma escola pública, poderia obter um diploma de graduação e felizmente entrar em um mestrado, talvez um doutorado e seguir uma jornada acadêmica? Subir sem “corrimão” é trabalhoso e requer foco, porém, isto não quer dizer que em algum momento não surgirá a vontade de se apoiar em algo ou até mesmo descer os degraus e desistir, mas é necessário que a própria reflexão seja cultivada nas críticas e vontades de outros.

Até o momento, encontrei pessoas que fizeram esforço para entrar em um Programa de Pós-graduação, mas após ingressarem, por diversos motivos, desistiram de seguir o caminho da pesquisa. Em primeiro momento, os questionamentos surgem sobre o motivo das pessoas tomarem tal atitude, por ser um grande desafio entrar, mas logo vem a compreensão, pois sei que muitos desafios surgem no decorrer de 2 ou 4 anos e só a pessoa sabe o que pode suportar, ainda mais porque muitos estudantes convivem com a solidão, a ansiedade e até com o desespero e sua saúde mental é propriamente afetada.

Abro um espaço para contar um relato. Foi durante o mestrado que me vi em meio ao caos, cheio de incertezas, perto da minha qualificação, com um filho de 1 ano e minha esposa estudando junto comigo também perto de qualificar-se. A nossa rede de apoio era minha sogra, que nos ajudava nos afazeres, para que o estudo e a pesquisa não fossem afetados; infelizmente ela precisou ser hospitalizada. Nesse tempo, meu psicológico de pai, marido e estudante virou um caos e me vi em meio à ansiedade do futuro, ainda mais quando, após 15 dias da sua hospitalização, minha sogra veio a falecer. Vi-me em uma luta, pois precisava ter forças não apenas para mim, mas para apoiar minha esposa que, perto da sua qualificação, havia perdido a mãe.

Dessa forma, surgiu a reflexão sobre a vida acadêmica, que era uma conquista que tínhamos que buscar em nós mesmos. Buscar a força coletiva um no outro para seguir, focar no futuro do estudo e no término dele porque era tudo ou nada. Nós resistimos! E em meio ao cansaço mental que tivemos e à tristeza que acompanhou as razões da recente dor, escrevemos a nossa dissertação, que foi qualificada e logo em seguida defendida com mérito de louvor das bancas.

Nesse relato, não quero ensinar uma receita de autoajuda, pois essa sanção beira o cartesianismo e não atinge a complexa realidade da vida e das pessoas, especialmente aquelas na academia, em que o esforço mental é nossa ferramenta de trabalho. Sobre a vida acadêmica, não a vejo como uma linha reta (seria bom se tivesse ou não). Durante 24 meses, temos que pesquisar e desenvolver uma dissertação de mestrado e temos 48 meses para elaborar uma tese de doutorado. Muitos desafios surgem levando ao pensamento de que não conseguiremos superar. Ter uma rede de apoio ajuda a minimizar essas barreiras, no entanto, realisticamente, muitos alunos não têm essa rede e acabam sendo envolvidos em muitos graus de dificuldade.

Pensar nisso é entrar em um pensamento complexo e não querer fantasiar as lutas diárias. Pensar em linha reta nos pouparia de gastar muita energia e não afetaria nosso psicológico, é claro. O que é a vida sem essas lições aprendidas e incertezas do fazer pesquisa? São essas experiências que tornam a vida mais difícil. É a partir dessas mediações que começamos a entender o outro. Isso leva ao ato de compreender o contexto em que o outro se encontra, assim como entender e criticar o contexto social, no qual enquanto uns podem mais, outros se veem praticamente obrigados a desistir.

Observamos hoje, no cenário acadêmico, que devido ao pouco incentivo governamental que os programas estão tendo e à negação da ciência, as bolsas de mestrado e doutorado foram drasticamente reduzidas. Como alguém que ainda não goza do capital econômico poderia manter-se em uma Pós-Graduação e seguir na carreira acadêmica? Essa vontade de seguir na carreira acadêmica ficaria apenas aos algozes de um privilégio econômico e político, e estudantes que não possuem um emprego ficam obrigados a deixar seu mestrado ou doutorado pela falta de apoio financeiro em suas pesquisas.

Lembro-me de um colega no mestrado de origem humilde, que entrou no mestrado sem bolsa assim como eu, mas resistiu em ficar na pós-graduação, mesmo com a falta de dinheiro para sua passagem de ônibus, que o conduzia à universidade. A nossa turma tentou ajudá-lo em rifas para poder ter o dinheiro, mas o esforço emocional que ele gastava sempre para ficar fazendo rifas fazia com que ele gastasse totalmente sua energia mental, que poderia ser usada para outras coisas. Devido a essas situações, ele precisou sair do mestrado muito perto de defender sua pesquisa, para dedicar-se ao trabalho e ajudar sua família.

Sempre analiso o contexto em que a pessoa se encontra. Não romantizo a teoria da meritocracia, ainda que seu discurso seja visto como bonito quando a pessoa alcança o “sucesso” depois das duras lutas. “Quem quer, corre atrás” é um discurso violento e generalizado, pois os estudantes vivem sob uma diversidade e em diferentes contextos e, por isso, a vida é complexidade.

Todos deveriam ter a oportunidade de estudarem e terem uma educação de qualidade em escolas e universidades públicas, mas a realidade é que, desde os primeiros anos escolares, nem todos possuem um espaço em sua casa aconchegante para estudar. Nem todos possuem uma família com estruturas financeiras ou emocionais para servir como base. Esses são exemplos que cheguei a ouvir de colegas quando falavam sobre as experiências de vidas. São situações que causam angústia em quem quer dedicar-se aos estudos.

Quando analiso o pensar sem “corrimão” sei o quanto é difícil. Apesar disso, Hannah Arendt nos ensina que não devemos tomar um jugo superficial das situações, das falas e do que a sociedade impõe que influencia nossos pensamentos. Ainda assim, é o pensar crítico, a percepção de que a vida é um texto e tem um contexto e segue a uma lógica interna da compreensão segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes

Atentar-se aos circuitos do pensamento presente na sociedade envolve os processos de compreensão das pessoas e o nosso próprio entendimento. Trata-se de estranhamento consigo e da autocritica. Parte da influência de um autor, Gilberto Velho, que tenho sempre em mente. Ele fala sobre estranhar o familiar, desnaturalizar para saber o que é melhor para nós. Estranhar o que já lhe é natural é um processo metodológico intenso, pois desnaturaliza e confronta as interpretações diferentes que existem em relação a fatos e situações. Também penso sobre como o “presente é invisível”, de Herbert Marshall McLuhan. Mesmo que não entendamos as questões atuais que nos rodeiam e devemos analisar o presente como uma pretensão futura.

Para finalizar, deixo uma reflexão que guardo sempre quando analiso o contexto social dos jovens que estão buscando seu lugar. Grandes pesquisadores, professores e escritores que querem ou vão surgir, talvez não estejam em um campo social privilegiado, talvez estejam em uma casa sem o mínimo de conforto, estudando em meio ao caos, tentando concentrar-se. Em nenhum momento romantizo este quadro contextualizado, mas elevo a força de vontade e persistência dos que ainda não têm suas vozes ecoadas nas páginas de artigos científicos, livros ou palestras. Estarão um dia fazendo a diferença em seu campo de atuação, por pensarem sem corrimão e por instigar a coragem e a resistência. Se possível, revisitar o que chamamos de experiência acadêmica, pois ela não se encontra no que delegamos como científico no submundo das sensações animalescas.

Referências

ARENDT, Hannah. Pensar sem corrimão. Lisboa: Relógio d’ Água, 2019.

MCLUHAN, Marshall. The Playboy Interview. Essential McLuhan Toronto: House of Anansi Press Lt, 1969.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: Oliveira, Edson. A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


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JETUR LIMA

Doutorando em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (PPGCI-UNESP). Mestre em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCOM/UFPA). Graduado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Pará.