AO PÉ DA ESTANTE


ESPIÕES E SEUS AUTORES

Motivada pelo falecimento do escritor John Le Carré, em dezembro de 2020, Sarasvati retorna aos comentários sobre livros para ela importantes, significativos ou apenas prazerosos.

Discorreu aqui, em geral, sobre autores de crimes e detetives, aqueles da literatura policial ou de mistério, embora reconheça lacunas consideráveis. Pela primeira vez, no entanto, aventura-se no território da espionagem e, especificamente, da espionagem sob o olhar britânico. O serviço de espionagem britânico, ou de segurança externa, denomina-se MI6 (o de segurança interna é o MI5) e dele se originaram os autores escolhidos.

Em poucas palavras, apresenta-se Helen MacInnes, bibliotecária, nascida na Escócia e casada com um professor, este sim do MI6. Ambos viveram na Europa, justamente nos anos 1930, até sua mudança definitiva para os Estados Unidos em 1937. A vivência europeia trouxe o pano de fundo a todos os seus livros, o horror ao nazismo e o reconhecimento às resistências. No Brasil, as obras traduzidas sempre iniciavam o título como “Aconteceu em...”. Livros interessantes, ótimos passatempos, nada de extraordinário.

O segundo autor oriundo do MI6 foi Somerset Maugham. O escritor muito influenciou as leituras jovens nos anos de 1960, em obras como O fio da navalha e Um gosto e seis vinténs, por seu talento literário e sua cultura. Porém, deixou a espionagem de lado. Segundo Le Carré, Maugham era homossexual, ou bissexual, e nunca espezinhou o serviço secreto britânico, por medo de represálias. Vale lembrar que Maugham faleceu em 1965, e a homossexualidade foi legalizada na Inglaterra apenas em 1967, até então causando prisões e até suicídios, dentre os quais o de Alan Turing, o matemático britânico a quem o mundo deve a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial.

O terceiro autor, Graham Greene, também notável e, por vezes, brilhante mesmo, deixou vastíssima obra, de diversos gêneros e temáticas. Dentre seus romances destacam-se O poder e a glória e O fator humano. Oriundo do MI6, Greene permitia-se zombar do serviço secreto, como na obra Nosso homem em Havana. Outro livro seu, no meio do caminho entre o romance, o jornalismo e a espionagem, por sinal excelente e do qual se originou o filme de mesmo nome, foi O americano tranquilo, que retrata a Indochina (da qual fazia parte o Vietnã), em 1958, ao tempo dos franceses.

Bem de passagem, cita-se Ian Fleming, não oriundo do MI6, mas que trabalhou na inteligência naval britânica durante a Segunda Guerra. Fleming dispensa comentários, pois foi o criador de James Bond, o agente 007.

Finalmente, chega-se ao maior de todos, o especialista, o grande autor de obras de espionagem, John Le Carré, pseudônimo de David John Moore Cornwell. Trabalhou para o MI6 de 1960 a 1964, quando o agente duplo Kim Philby revela a Moscou os nomes de agentes britânicos (história verídica), impedindo que os mesmos continuassem a agir. Em uma de suas obras, Le Carré levanta o tema da traição dentro do MI6. Trata-se do livro e do filme O espião que sabia demais, ambos excelentes.

Por que Le Carré ainda é considerado importante? Suas obras revelam, desvelam, o espírito da época em que foram escritas, ao longo de quase seis décadas - de 1961 a 2019. Le Carré não é datado, não se esgota no tempo. Profundo no estudo da alma, da consciência, dos dilemas, excelente escritor, alia o pano de fundo da espionagem aos cenários sócio-políticos vigentes. Alguns de seus romances tornaram-se filmes, um dos quais dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles - O jardineiro fiel. Uma seleção se mostra indispensável, pelo que destacamos: Um crime entre cavalheiros, que traz uma crítica mordaz da sociedade britânica, além de um crime muito instigante; O espião que saiu do frio, que aborda a guerra fria e a divisão da Alemanha em Ocidental e Oriental, no pós-guerra, obra-prima como livro, e como filme em preto e branco; Amigos absolutos, que trata da geração de 1968, seus conflitos, crenças e lutas; quatro décadas depois, outra obra-prima, a melhor de todas - O túnel de pombos, interessantíssima, pequena autobiografia com ótimos relatos. Ficou a nos dever a autobiografia completa, mas não se pode dizer se por natural discrição quanto à vida particular, ou se interrompida pela morte do autor.

Nos dias de hoje, em que revivemos no mundo inteiro, mas especialmente no Brasil, a disputa entre extremismos e a falência do neoliberalismo desenfreado, Le Carré, além de excelente autor, é um porto seguro quanto ao radicalismo e à irracionalidade.

 


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SARASVATI

Nascida e criada na Índia, estudou na Universidade de Madras, morou em Goa (onde aprendeu português) e viajou pelo mundo em busca de autores e compositores diferentes. Apaixonada pela música brasileira, fixou-se em São Paulo, pela convivência pacífica entre religiões as mais diversas.