ALÉM DAS BIBLIOTECAS


RECEITA FEDERAL DIZ QUE POBRES NÃO LEEM E PONTO FINAL

O escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimento e encantamento.

Mia Couto, Cape Town, jul. 2002

Há uma série de datas comemorativas que festejam elementos os mais interessantes ou inusitados – dia da empatia, dia da empregada doméstica, dia do orgasmo; dia mundial do disco voador; dia mundial do dedo do meio; dia da injustiça; dia da masturbação; dia do beijo e por aí vai. Em se tratando do livro e de temas correlatos, são muitos os dias que exaltam o livro em sua magia e em seu poder de transformação, em nível nacional e internacional.

Páginas eletrônicas, livros didáticos, enciclopédias e outros veículos fazem alusão a dias de festa em torno do livro e de profissionais ou de temáticas envolvidas (in)diretamente com a produção editorial. Para não extenuar o leitor, eis alguns exemplos: 07 de janeiro – Dia Nacional do Leitor; 30 de janeiro – Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos; 12 de março – Dia do Bibliotecário; 14 de março – Dia Nacional da Poesia; 21 de março – Dia Internacional da Poesia; 02 de abril – Dia Internacional do Livro Infantojuvenil e/ou Dia de Hans Christian Andersen, autor dinamarquês de histórias infantis que atravessaram gerações, como “A pequena sereia” e “O patinho feio”; 07 de abril – Dia do Jornalista; 18 de abril – Dia Nacional do Livro Infantil e/ou Dia do imortal brasileiro Monteiro Lobato, precursor e maior autor da literatura infantojuvenil do país, além de fundador da primeira editora brasileira, a “Monteiro Lobato e Cia”, de 1918; 23 de abril – Dia Mundial do Livro e dos Direitos Autorais; dia 12 de outubro – Dia Nacional da Leitura; dia 29 de outubro – Dia Nacional do Livro et cetera et cetera.

Além do mais, a soma de verbetes que remetem à expressão – livro – em consulta ao Google, empresa multinacional norte-americana, que hospeda e desenvolve serviços e produtos incontáveis baseados na internet e no fluxo informacional incessante, aponta, aproximadamente, em maio de 2021, 242.000.000 resultados em 0,77 segundos. E o que dizer de imagens, pensamentos, frases, aforismos, máximas e citações que lotam nossas redes sociais com belas e eloquentes mensagens acerca da capacidade de o livro semear ideias e ideais, pensamentos, reflexões e indagações mundo afora, assemelhando-se às multicoloridas abelhas que espalham pólen e encantamento mundo afora?

Verdade que há ideias fantásticas! Iniciativas de crianças sem recursos que organizam a duras penas minibibliotecas para os vizinhos. E o que dizer da linda experiência do Biblioburro, biblioteca itinerante que segue emprestando livros a crianças e adolescentes nas costas de dois burros, Alfa e Beto, em zonas rurais longínquas do povoado La Gloria, na Colômbia, por iniciativa do jovem Luís Soriano, o El Profesor?

Imagem 1 – Biblioburro leva livros aos povoados perdidos da Colômbia

 

 

Fonte:

Catraca Livre, 2021.

Há a história de um casal relatada no livro “Caçadores de bons exemplos: em busca de brasileiros que fazem a diferença”, objeto de texto INFOHOME, maio / junho de 2017. Durante quatro longos anos – que se estendem entre 2011 e 1 de dezembro de 2014 –, nos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal, sem qualquer vínculo político e religioso e sem patrocínio, Iara e Eduardo identificaram 1.150 projetos, que devolveram vida e sonhos a muita gente – suicidas em potencial, vítimas de depressão e de tristeza profunda, portadores de deficiências graves, físicas ou d’alma. Dentre o total, 49 propostas são voltadas ao livro e à leitura, lembrando que o assistencialismo faz o bem em eventos pontuais, enquanto projetos sociais fazem o bem constantemente e constroem um mundo melhor, o que só é possível via leitura, livros e educação. Ademais, há troca-troca de publicações em aeroportos, rodoviárias, estações de metrô e similares. Rodas de leitura em parques, livrarias e onde der... Fluem minibibliotecas em praças e parques, no Brasil e nos demais países.

Isto exige posicionamentos sólidos dos governantes brasileiros em todas as instâncias. Mas, isso não ocorre. A prova evidente é o pandemônio que se instaurou com a pandemia do coronavírus que desnudou o caos do ensino privado e público. Instalar o ensino a distância ou recursos remotos a torto e a direito, sem conhecer as condições reais das famílias brasileiras, sem discernimento e irrefletidamente, desvestiu a política educacional e impôs o livro como mera mercadoria ou coisa alguma.

E mais. Aliás, há muitos mais! Recentemente e criminosamente, a Receita Federal proclamou que pobres não leem livros não-didáticos para defender o aumento da tributação, como forma de focalizar políticas públicas ao deus-dará, como denunciado em diferentes veículos brasileiros, como “Folha de Pernambuco” e “Folha de S. Paulo”, abril 2021. A Receita retrocede ao século passado, quando o pensador italiano Umberto Eco, em seu romance de maior repercussão, “O nome da rosa”, lançado exatamente em 1980, e adaptado posteriormente para o cinema em filme homônimo sob a direção do francês Jean-Jacques Annaud, evidencia o elitismo intelectual. Traz à tona os mistérios que rondam a instituição religiosa onde os fatos se passam, graças à existência de uma biblioteca secreta interligada aos acontecimentos mórbidos que ocorrem, haja vista que livros e escrituras ali armazenados são considerados nocivos à Igreja Católica.

Imagem 2 – Minibibliotecas em praças e parques, arquipélago de açores, Ilha São Miguel

 

 

Fonte:

Arquivo particular da autora, 2017

Em oposição, hoje em dia, a democratização da informação faz de cada indivíduo um possível autor. Aos livros impressos atrelam-se electronic books (e-books), coletâneas, antologias e muitas outras formas de divulgação. Há uma quantidade imensurável e inacreditável de editoras que oferecem seus serviços para a edição de livros, sempre tendo a moeda como valor máximo. Lançam mão de uma série de recursos para “engordar” os currículos dos acadêmicos no enfrentamento de concursos que virão: parcelamento do valor total em módicas prestações; títulos de revistas em inglês para garantir maior credibilidade e pompa, ou, no mínimo, para chamar atenção e atrair clientes; garantia de divulgação no Google; validade “assegurada” pela validação junto à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Fazem crer que a qualidade é secundária. A quantidade é prioritária.  Eis uma perigosa moeda de duas faces! O menos pode ser mais, sim, senhor!

Celulares e outros aparatos eletrônicos dispõem de livros eletrônicos clássicos ou best-sellers, medíocres ou não. Repudiá-los ou confessar seu amor ao olor do papel nos confere o status de dinossauro. Os publicitários gritam: “larguem de frescuras. Repudiem nostalgia e romantismo barato. É possível economizar espaço em apartamentos cada vez mais “apertamentos”. Larguem o papel de mão. A tela dos computadores, notebooks e tablets lhes permitem sublinhar frases ou palavras que chamam sua atenção”. O site norte-americano CafeScribe anuncia que vai criar e popularizar um adesivo com cheiro de “livro velho”, para ser colado na tela do computador quando alguém comprar um e-book. E ainda é possível adquirir lindos adesivos para colar aos gadgets de leitura, isto é, dispositivos eletrônicos portáteis e cheios de inovação visando assegurar aos e-books desenhos mais avançados.

Sem desmerecer a valia e as mil potencialidades dos artefatos tecnológicos, que integram a realidade contemporânea, incluindo lives, eventos online e/ou decisões editoriais a distância como forma de sobrevivência em tempos da Covid-19, acreditamos que o livro impresso nos enterrará um a um. Ninguém rouba dos amantes da boa literatura a magia de repassar folha por folha, como a carícia lenta e deliciosa dos que amam o(a) companheiro(a), rever, reler, grifar, aspirar o olor, deliciar-se com as charmosas capas cheias de significação... Isto é, os suportes eletrônicos são indispensáveis, sim, mas os livros em papel sobreviverão lado a lado. Não são eles excludentes, mas complementares...

Enfim, façam tudo que quiserem! Uma única proibição: não deixem a qualidade de lado! Para finalizar e não com um conto, um acadêmico-editor sintetizou toda sua autonomia. Escreveu com pompa: “eu mesmo faço meus livros. Só (sic) escritor. Só (sic) diagramador. Só (sic) ilustrador. Só (sic) revisor. Só (sic) capista. Só (sic) bibliotecário para fazer aquela tal ficha que não sei para que serve! Só (sic) produtor de meus livros e ponto final”. E eis que ressurge a Receita Federal com força total espalhando seu disparate. Afinal, não são apenas os pobres que não leem! E ponto final mesmo!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”