CAFÉ COM PÓS


QUEM SERÃO OS NOVOS ESTUDANTES DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU NO BRASIL?

A primeira universidade brasileira foi criada apenas em 1920, em uma união de escolas tradicionais e no intuito de atender à necessidade diplomática de conceder um título de doutorado. Muitas águas rolaram e muitos foram os processos em que passamos enquanto país, acompanhando mudanças políticas, necessidades industriais e lutas estudantis, tanto antes quanto depois desse fato.

De maneira geral, faculdades e escolas mantiveram por muitas décadas um ensino essencialmente técnico, que pouco a pouco vem se ampliando e aumentando sua complexidade, embasando o ponto em que hoje nos encontramos quanto ao trabalho científico no país que, mesmo sem financiamento adequado, tem demonstrado um grande destaque mundial.

A ampliação do número de universidades e especialmente a ampliação de financiamento para a execução de pesquisas criou a possibilidade do acesso a um ensino superior se tornar uma realidade para pessoas de baixa renda. Programas como o Prouni e Fies fizeram com que o cursar uma graduação fosse possível na vida de pessoas que antes nem sequer pensavam nessa realidade como uma possibilidade, e a ampliação de bolsas de fomento e internacionalização proporcionaram que essas pessoas seguissem na academia enquanto pesquisadores.

Porém, o teto de gastos instaurado no fim de 2016 e que entrou em vigor em 2017 começou uma mudança no ritmo dos investimentos na educação do país, agravada pelo atual governo e o contexto de pandemia em que vivemos. Investimentos vêm sendo constantemente revistos e cortados, e são tantas as propostas e revisões nesse sentido que tem sido difícil se manter atualizado – tanto prática quanto psicologicamente. Também vivemos uma desmoralização de pesquisas e pesquisadores, agravando essa reviravolta.

Um dos impactos imediatos nesse contexto é a enorme incerteza dos pesquisadores que deixaram sua antiga atuação profissional para empenhar-se na pesquisa científica brasileira. São pessoas que, como eu, abandonaram vagas de emprego nos mais distintos setores, em âmbitos públicos ou privados, para se dedicar exclusivamente à pesquisa.

Essa dedicação completa, ainda que no âmbito trabalhista padrão não seja nenhum pouco vantajosa, já que no Brasil um pesquisador que recebe bolsa não tem vínculo empregatício, é muito rica para as pesquisas que serão desenvolvidas pois possibilita a dedicação completa à pesquisa, o complemento internacional (que traz inúmeros benefícios também para as universidades e os programas de pós-graduação), e a possibilidade de execução de pesquisas aplicadas que demandam um grande tempo de deslocamento.

Se essa escolha (de trocar o emprego habitual pela pesquisa) já era difícil antes dessa situação, como essas mudanças e incertezas têm impactado nos atuais e potenciais estudantes de pós-graduação do Brasil?

Lembram de quando falamos sobre as pessoas de baixa renda começarem a pensar em estudar? Bom, essas pessoas dificilmente trocarão um emprego fixo convencional, por pior que seja, pela incerteza de ter uma bolsa de pesquisa para se dedicar à investigação científica. Você não tem para onde correr nem ao que se apegar caso algo mude e o governo mais uma vez resolva cortar bolsas, muito menos terá uma garantia de conseguir o mesmo emprego se isso acontecer.

Voltamos, portanto, a reafirmar a elitização da academia. Como assim? Mestrados e doutorados duram, convencional e respectivamente, 2 e 4 anos. Depois desse tempo, que provavelmente não será completamente preenchido com o financiamento da pesquisa (já que muitas vezes o candidato não consegue o financiamento exatamente no mês em que inicia a pesquisa, ou não consegue mantê-la até exatamente o final dela), o pesquisador terá esse tempo “vazio” no currículo, o que muitas vezes é visto como uma desatualização dentro de empregos técnicos.

Mais aí muitos podem questionar: e que diferença faz já que com uma pós essa pessoa pode se preparar para vagas que se enquadrem-na  sua nova formação, com seu(s) respectivo(s) título(s), e que darão melhores perspectivas de futuro?

Caso você tenha um teto garantido enquanto passa por essa preparação e espera a oportunidade surgir, eu diria que problema nenhum. Mas, se você depende de você mesmo para seu sustento e sobrevivência e/ou se, além disso tem dependentes, importa – e muito.

Já notamos um impacto no próprio número de inscrição de alguns processos seletivos e, conversando com alunos, é comum ouvir os questionamentos quanto às incertezas desse momento.

Assim, é lógico supor que as pessoas que possuam uma garantia econômica mínima a se apegar possam pensar em tomar essa decisão, mas os que não a possuem dificilmente tomarão esse impulso, pois sabem que no atual cenário poderão se deparar com um gap econômico que é impraticável na sua realidade.

Além do impacto social que isso causará, lembro ainda outra problemática: constantemente nos deparamos com perguntas como “por quê você escolheu esse tema?” e “qual seu interesse pessoal nessa pesquisa?”, e observamos que pessoas tendem a interessar-se por aspectos que perpassam suas realidades e personalidades. E quem são essas pessoas com garantias mínimas para seguir as pesquisas científicas do país? Quais seus interesses e suas realidades? De quem serão os discursos que a ciência brasileira passará a ouvir? Ou, provavelmente muito mais importante – de quem serão os discursos calados e quais serão as pesquisas perdidas?

 

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Criação de Universidades: linha do tempo. Disponível em:  <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/linhatempo-ifes.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2020.

FÁVERO, M. L. A. A Universidade no Brasil: das origens à Reforma Universitária de 1968.  Educar, Curitiba, n. 28, p. 17-36, 2006.

SOUZA, D. G.; MIRANDA, J. C.; SOUZA, F. S. Breve histórico acerca da criação das universidades no Brasil. Educação Pública, v. 19, n. 5, 12 mar. 2019. Disponível em: <https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/5/breve-historico-acerca-da-criacao-das-universidades-no-brasil>. Acesso em: 17 ago. 2020.


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HELOÁ OLIVEIRA

Doutoranda em Ciência da Informação na Unesp - Marília, Mestra em Ciência da Informação pela Unesp - Marília e Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Estadual de Londrina.