LEITURAS E LEITORES


CECÍLIA MEIRELES: POESIA INFANTIL PARA COMPOR O ACERVO DA BIBLIOTECA ESCOLAR

Houve um tempo em que se considerava a criança como um adulto em menor estatura. Em consequência disso, era submetida a atividades próprias para o mundo adulto. É possível constatar em imagens até o começo do séc. XX, por exemplo, que as crianças trajavam roupas e mantinham a mesma postura dos adultos em fotos familiares, dentre tantas outras perspectivas que se poderia olhar. 

A partir do século XX, com a expansão dos estudos científicos a respeito da criança, alterou-se gradativamente essa concepção, afastando-a de miniatura de adulto, trazendo-a para a dimensão com a qual se tem mais referência hoje, ou seja, como um ser em desenvolvimento, que tem a vida toda em aprendizagem social e cultural.

O adulto tem o compromisso de promover o encontro da criança com aquilo que é produzido pela sociedade: literatura, filme, pintura, música, dentre outras manifestações estéticas que oferecem possibilidades para o enriquecimento cultural.

Nesse contexto, instigar a criança à descoberta da literatura poética torna-se um compromisso do adulto, professor ou bibliotecário, para levá-la ao mundo da poesia, criar nela a necessidade por esse tipo de texto, estimular-lhe essa vivência cultural.

A criança não terá um estalo e pronto: está gostando de poesia! Ela precisa ser apresentada à musicalidade, à brincadeira com as palavras, às rimas que compõem a produção poética, por exemplo:

[...]

A avó

vive só.

Mas se o neto meninó

mas se o neto Ricardó

mas se o neto travessó

vai à casa da vovó,

os dois jogam dominó.

(A avó do menino, Cecília Meireles)

Os versos têm proximidade com a oralidade, exploram a combinação sonora e, isso, contribui para a criança dar sentido ao que lê ou ouve e, assim, responde a ele de acordo com o que conhece; indaga-se sobre o que desconhece, cria imagens e mantém o diálogo tanto com o texto quanto com as pessoas no entorno.

O texto de poesia tem aspectos formais específicos que passam por vários matizes, por exemplo, quanto ao seu formato, a sua distribuição na página, à estrutura em verso, à economia no uso de palavras se comparado a um texto narrativo. Além de tudo isso, na poesia as palavras perdem seu valor utilitário, tornam-se polissêmicas, ampliam seu sentido.

Literatura é arte. Poesia é arte. Poesia para criança é arte.

Poesia para criança é criação estética elaborada, que nem todo autor consegue fazer. Por muito tempo a poesia destinada à infância no Brasil foi apenas um compêndio de boas maneiras, na tentativa de se incutir normas na criança.

No passado, a qualidade temática e execução deixaram a desejar, pois a preocupação maior era ser pedagogizante, uma vez que a escola era uma das principais consumidoras daqueles textos poéticos. Eram outros tempos, conceitos distintos da criança na sociedade, do papel da poesia na formação infantil.

Ainda nos dias atuais é possível encontrar autores que versejam como se a criança ainda fosse a miniatura de adulto dos tempos antigos, tanto na criação do verso quanto na temática destinada ao leitor infantil. Muitas vezes encontram-se arremedos de textos poéticos recheados de rimas. Fazer arte poética para o leitor em formação está além da rima.

Quando se pensa na composição do acervo da biblioteca da escola, há uma obra-prima da poesia infantil que pode compor o acervo, trata-se do livro Ou isto ou Aquilo de Cecília Meireles.

Cecília Meireles (1901-1964/ Rio de Janeiro) foi escritora, poetisa, jornalista. Teve parte de sua produção voltada à infância, como a coluna no Jornal Manhã sobre folclore infantil. Além disso, exerceu atividade como professora para crianças, preocupando-se com a educação e os aspectos culturais na infância.

Em 1934, em plena ditadura de Getúlio Vargas, Cecília criou a primeira biblioteca destinada ao público infantil no Rio de Janeiro, espaço para leitura e vivências culturais. Não demorou a ser perseguida pelo governo que considerou a iniciativa subversiva e fechou a biblioteca em 1937.

Em 1951, lançou o livro Problemas da Literatura Infantil, obra teórica a respeito da arte literária e a infância. É uma obra didática, reflexiva, na acepção mais positiva da palavra, conforme a autora explica previamente: “não se pretendeu aqui dar solução aos inúmeros problemas da Literatura Infantil. Pretendeu-se apenas insistir sobre a sua importância e alguns dos seus variados aspectos.” Nessa obra, Cecília deixa o legado teórico para educadores e bibliotecários que tenham interesse em se embrenhar pelo universo infantil.

Escrever poesia para a infância requer maturidade artística, domínio do verso, compreensão do universo infantil como Cecília tinha em 1964, no auge de sua vida como escritora, quando publicou Ou isto ou aquilo.

O livro Ou isto ou aquilo é composto por 56 poemas que têm temáticas relativas à vida infantil, brincadeiras, o cotidiano e, também, questões existenciais. Os versos têm musicalidade que os aproximam da oralidade, da fala cotidiana, algo com o qual a criança se identifica. Tudo se parece muito com a linguagem infantil, com o frescor que uma criança usa ou descobre a linguagem, de como se encanta e brinca com as palavras. Cecília escreve versos sem subestimar a sensibilidade e a inteligência da criança como, por exemplo, no poema que dá título à Obra:

Ou isto ou aquilo

 

Ou se tem chuva e não se tem sol,

Ou se tem sol e não se tem chuva!

#

Ou se calça a luva e não se põe o anel,

Ou se põe o anel e não se calça a luva!

#

Quem sobe nos ares não fica no chão,

Quem fica no chão não sobe nos ares.

#

É uma grande pena que não se possa

estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

#

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,

ou compro o doce e gasto o dinheiro.

#

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...

e vivo escolhendo o dia inteiro!

#

Não sei se brinco, não sei se estudo,

se saio correndo ou fico tranquilo.

#

Mas não consegui entender ainda

qual é melhor: se isto ou aquilo.

 

Esse poema, que também nomeia o livro, pode ser aproximado livremente a uma interpretação filosófica da vida: não se pode ter tudo. A autora explora isso com linguagem singular, sem a tentativa de dar lição de moral para a criança. Apenas leva-a a brincar com as palavras, inserindo-a na temática de natureza existencial tão complexa de ser apresentada a uma criança, mas dita por Cecília de forma, aparentemente, simples.

Para professores e bibliotecários, envolvidos com o trabalho destinado à infância, é importante ter parâmetros de obras que são referência para compor o acervo poético literário da biblioteca sem, no entanto, transformar a referência em algo canônico, imutável, que aprisiona a olhar em direção às novidades.

Consultas

AGUIAR, Vera Teixeira; CECCANTINI, João Luís (orgs.). Poesia Infantil e Juvenil brasileira: uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.

BARROSO, Vera; GOIS, Ancelmo. Série: De Lá Pra Cá Episódio: Cecília Meireles (03/07/2011) País: Brasil Ano: 2009-2014 Fonte: TV Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QKYnGDtlm1s Acesso em: 28/07/2020.

BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática,1986.

GOLDSTIEN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Ática, 1987.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. São Paulo: Global, 2015.

MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.