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BIBLIOTECAS, USUÁRIOS, E-BOOK E O MERCADO EDITORIAL

Para que um serviço de informação bibliográfico possa operar a contento, necessita uma estabilidade na sua infraestrutura e processos operacionais internos, e em especial, na relação externa com os fornecedores. Exemplo desta necessidade na gestão da biblioteca é o dos processos catalográficos.

A biblioteca tem como recurso essencial o catálogo, que se configura em instrumento importante para tornar objetivo e permanente o processo intelectual de análise e síntese dos documentos contidos em sua coleção e que serve de canal de comunicação normalizada com o público. 

Este recurso é construído por meio da catalogação, processos pelo qual se estabelece o relacionamento entre os documentos, e destes com as necessidades de informação das pessoas.

Segundo preconizava Seymour Lubetzki, o catálogo deve servir para: facilitar a localização de um material específico, isto é, de determinada edição de uma obra que está na biblioteca; relacionar e/ou reunir as edições existente de uma determinada obra e as que têm de um determinado autor. 

Assim, o que a biblioteca possui de um documento no acervo, tem no catálogo o meio que serve para mostrar a sua existência e disponibilidade.

O conceito enfoca o recurso/material/documento contido no acevo bibliográfico, anteriormente, impresso ou analógico, porém agora, há o digital, e o princípio deveria ser válido e mesmo tranquilo para o sistema bibliotecário. 

Entretanto, neste contexto há dois modelos de negócios envolvidos. Um é o modelo bibliotecário; outro é o modelo editorial estruturado sobre estrutura comercial de venda e, portanto, do lucro.

Com a crescente produção de conteúdo digital, a relação entre os dois modelos que vez ou outra apresentavam algum atrito comercial, parece enfrentar novas atribulações, decorrentes das plataformas de comercialização do livro eletrônico (e-book). A situação afeta os serviços bibliotecários como um todo. 

Pode ser que no Brasil, as bibliotecas ainda não tenham se deparado com tal situação, mas as bibliotecas norte-americanas têm-se mobilizado diante da atitude de grandes editoras na comercialização de livros eletrônicos.

Ocorre que, em novembro de 2019, a McMillan Publishing, uma das cinco maiores editoras dos Estados Unidos, anunciou um novo modelo de comercialização que limita o empréstimo das bibliotecas, em especial das bibliotecas públicas a apenas uma cópia dos títulos recém-lançados em formato digital, seguido de um embargo de oito semanas para a aquisição de cópias adicionais. 

Portanto, limitando o empréstimo à uma única cópia eletrônica, ainda que a biblioteca possua, além da central, várias bibliotecas ramais.

Essa atitude da Editora (que parece indicar posicionamento do mercado editorial), limita o acesso perpétuo aos e-Books e audiolivros, e dá um alerta do que ainda pode vir. 

Para o KCLS (King County Library System), sistema bibliotecário composto de 50 bibliotecas, e que atende a mais de um milhão de usuários, o anúncio é preocupante.

A decisão da editora Macmillan baseia-se na premissa de que as bibliotecas minam os lucros das editoras ao fornecerem acesso gratuito aos e-books. Isso é o mesmo que buscar limitar o número de livros impressos que uma biblioteca pode comprar, porque esses livros são oferecidos gratuitamente para acesso e leitura, ao público.

Em carta aberta aos bibliotecários, a Editora destacou que o rápido aumento da leitura de livros eletrônicos, via empréstimos bibliotecário, diminui o valor econômico percebido de um livro. Enquanto o ato de emprestar o livro impresso requer do leitor, assumir o custo do transporte; obedecer ao prazo de devolução; e o pagamento de multas incômodas se devolver fora do prazo. 

No contexto do livro digital inexiste tal situação no mercado. Assim, há um entendimento, pelos editores, de que existe um problema de escalabilidade; com os consumidores consultando gratuitamente um e-book por meio do portal on-line da biblioteca, em vez de pegar fisicamente o livro na biblioteca.

Na manifestação da Editora, o embargo adotado de 8 semanas para nova aquisição da mesma obra, fez-se necessário por ser muito mais fácil às pessoas emprestar do que comprar, colaborando por fazer com que os clientes que compram livros mudem seus hábitos, deixando de alimentar o crescimento financeiro do comércio de livros eletrônicos. Ainda, segundo a Editora, a situação causa um problema no “ecossistema editorial”.

O cenário aponta para uma situação cuja solução tende a demorar, ou mesmo pode se ampliar. Entretanto, as bibliotecas são equipamentos que, no mercado da informação, equilibram o jogo do acesso à leitura e ao conhecimento. Elas garantem que todos possam ter acesso aos livros e outros recursos informacionais, não apenas aqueles que podem pagar.

A posição da editora Macmillan gerou um desconforto em cerca de 138 mil bibliotecários norte-americanos. Pois se estabelece uma nova realidade que favorece editoras e agregadores, em vez dos autores, consumidores e/ou usuários de bibliotecas no livre acesso as expressões dos autores, os textos ou reportagens de jornalistas, melodias e canções dos músicos e compositores e as produções visuais de cineastas, por exemplo.

Por outro lado, o mercado editorial parece não reconhecer que promove atrito com uma comunidade de leitores altamente engajados. Estudos recentes apontam a contribuição das bibliotecas para o próprio mercado editorial, ao destacar que nos últimos 10 anos, os usuários de bibliotecas também são significativos compradores de livros; fazem uso das bibliotecas como um ponto de descoberta, especialmente em localidades onde não há livrarias. 

Essas pesquisas apontam que:

  • 50% dos usuários da biblioteca relatam a compra de livros por um autor ao qual foram apresentados na biblioteca.
  • Tanto os leitores de impressos (54%), quanto os leitores de e-books (61%) preferem comprar suas próprias cópias desses livros.
  • Cerca de metade (48%) dos leitores com menos de 30 anos disseram ter comprado um livro mais recente. Outros 24% disseram que o emprestaram de um amigo ou membro da família e 14% disseram que o emprestaram de uma biblioteca.
  • 31% das pessoas que usaram sites de bibliotecas ou aplicativos para dispositivos móveis leram resenhas de livros ou receberam recomendações de livros.
  • 69% dos leitores do milênio têm cartões de biblioteca, e os dados destacam a visão dos milenares da biblioteca pública como oferecendo não apenas valor, mas também a oportunidade de explorar novos títulos sem investimento financeiro.

Como mencionado, pode não haver solução a curto prazo. Também, não se acredita em vencedores no embate entre os dois modelos de negócios. Pode ser que o atrito sirva para os editores despenderem tempo na busca de novos sistemas de locação, com base nos interesses do leitor ou na captura do seu interesse em relação ao conteúdo digital.

Esse esforço de colocar as bibliotecas como causa da queda nas vendas de e-book, esconde que o real problema está no conteúdo pirateado ou na falta de inovação do modelo editorial adotado. É também uma visão míope, que olha para as bibliotecas não como aliadas, mas como uma ameaça às vendas.

Segundo John Szabo e Skye Patrick, em um ambiente cultural cada vez mais digital; significa que as bibliotecas devem favorecer o acesso democrático à informação, no caso do livro eletrônico e audiolivros. Em 2019, os usuários de bibliotecas norte-americanos baixaram mais de 6 milhões de títulos, um aumento de quase 20% em relação ao ano de 2018, e a demanda só cresce. 

Mencionam, também, o caso do Sistema de Bibliotecas Públicas da cidade de Los Angeles (EUA), no qual a mídia eletrônica representou 47% da circulação total no ano de 2018, ante 40% da circulação no ano de 2017. Para o Sistema de Biblioteca metropolitano, em 2018, a mídia eletrônica representou 37% da circulação total, ante 32 % do ano anterior.

Para estes bibliotecários, a posição da editora McMillan, em categorizar os empréstimos de e-book como um "problema", falha em reconhecer que as bibliotecas são parte essencial da cadeia produtiva do livro ou do ecossistema editorial. As bibliotecas norte-americanas gastam milhões de dólares por ano em conteúdo digital. Em geral, pagam mais do que outros compradores. Os editores cobram das bibliotecas até quatro vezes mais por título digital, do que de um varejista.

Eles ainda observam que os sistemas de Bibliotecas Públicas de Los Angeles compram em grande escala. Citam como exemplo, o livro de Michelle Obama "Becoming" que teve uma enorme popularidade. Foram adquiridas 833 cópias de e-books e 773 cópias de audiolivros. 

As bibliotecas fazem grande investimento para satisfazer os seus leitores. Essa ação é vista como o custo no seu modelo de negócio: cumprir a missão da biblioteca de fornecer acesso ao público.

Para a comunidade bibliotecária norte-americana, o embargo editorial preconizado, impede as bibliotecas de fornecerem esse serviço e missão essencial. À medida que as pessoas optam por ler em seus tablets e smartphones, junto as bibliotecas, importa lembrar que as bibliotecas são, justamente, os melhores clientes das editoras. 

Bibliotecas não só compram, mas ajudam a criar, nas pessoas, o gosto pela leitura e, portanto, pelos livros. Fatos que podem se traduzir em uma vida de leitura e de compra de livros. 

Além disso, os eventos com autores promovidos pelas bibliotecas, em geral, estimulam vendas. E as pessoas que frequentam bibliotecas também compram livros - tanto para si quanto para dar como presentes.

A postura da editora Macmillan ao limitar a compra do produto, impõe uma longa espera ao usuário da biblioteca. Representa um ataque sobre instituições democráticas respeitadas e cujo valor central é o “acesso equitativo a todos”. 

Afeta, em especial, as famílias de baixa renda e pessoas com deficiência. Muitos leitores possuem visão limitada e dependem de e-books, com a capacidade de ajustar o tamanho do tipo de leitura. 

E o acesso remoto a coleção on-line da biblioteca é um benefício para as pessoas com restrições de mobilidade e que não podem ir à biblioteca. 

Para os bibliotecários, importante que as medidas não sirvam de justificativas para outras punições impostas aos leitores da biblioteca, pelos editores, bem como prejudique as atividades biblioteconômicas, em especial o tratamento técnico que tem o seu tempo de produção descritiva e inclusão no catálogo.

Indicações de leitura:

Duplantis, J. P. E-book embargo on libraries is only the tip of the iceberg. EMERGENT WEB, November 12, 2019. https://bit.ly/2QC5T7Y 

Rosenblum, L. G. Publisher’s Decision to Limit eBook Access is Bad News for Library Patrons. King County Library System, July 31, 2019. https://bit.ly/302qAxa 

SZABO, J. F.; PATRICK, S. Opinion: A major publisher is denying library users access to new e-books. That’s wrong. Los Angeles Times, DEC. 3, 2019. https://lat.ms/2QDP391 


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.