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CRISTO NEGRO DE PORTOBELO: A FÉ QUE EMERGE DAS ÁGUAS!

Todos nós guardamos conosco singularidades que não se explicam. Simplesmente são nossas. Por exemplo, sempre confessei meu encantamento perante artistas de rua, a exemplo dos que trazem música à vida dos que passam velozes e preocupados, às vezes, por meio de instrumentos musicais variados; às vezes, com sua voz, treinada ou não. Há as estátuas vivas que se postam horas a fio nas calçadas das grandes cidades turísticas. Há os malabaristas que se esforçam em distrair transeuntes e motoristas, quiçá, sonhando com o apogeu dos grandes circos. Nada importa. Eles estão por aí, nas ruas, calçadas, estações de trem e de metrô, rodoviárias, esquinas, em qualquer lugar, clamando por um pouco de atenção ou por uma só oportunidade!

Todo este preâmbulo apenas para lhes falar de meu fascínio por lendas populares, brasileiras ou não, muitas das quais trazem subjacentes crenças, fé e devoção. No caso específico, o foco é o Cristo Negro, cujo aparecimento ocorreu entre os anos de 1800 e 1830 d.C., momento histórico em que o Caribe registrou vertiginoso sincretismo religioso. Na atualidade, o Cristo Negro é cultuado, sobretudo, na Guatemala, nas Filipinas e no Panamá, guardando em cada nação suas especificidades. Na Guatemala, está cercado por mulheres brancas e há certa fusão entre religião católica e vodu, culto que conjuga elementos de possessão e magia. Nas Filipinas, a Procissão do “Nazareno Negro” constitui uma das celebrações religiosas mais populares. 

São muitas as denominações a ELE atribuídas, como “Nazareno”, “Naza”, “O Negro”, “O Negrito”, “O Cristo” e “O Santo.” No caso específico, visitamos o Cristo Negro exposto na Igreja São Felipe, em Portobelo, pequena cidade portuária (244,7 km²) panamenha da província de Cólon, distante 96,5 km da Capital, numa hora e meia de percurso em carro próprio. A estátua de madeira boiava às margens do porto nas águas do oceano Atlântico, de forma imprecisa, em torno de 1658. Sua origem é cercada de histórias e de mistérios. Nada nem ninguém sabe como ali chegou. Chovem especulações e ditos e não ditos. Indo adiante, dizem que o Cristo – óbvio que não importa sua cor (se branco ou amarelo ou marrom) – foi levado muitas e muitas vezes a outras províncias. Surpreendentemente, quando menos se esperava, lá estava ELE de volta: no mesmo altar, na mesma posição. Para os mais crédulos, ostentava no rosto um doce e maroto sorriso. 

Diante da insistência de “Naza”, a Paróquia de Portobelo decidiu atendê-lo. A Igreja simples, mas aconchegante, foi construída em 1814 e sua torre, concluída em 1945. Pouco a pouco, os fiéis foram chegando e se avolumando. Nos dias de hoje, adornado com um manto, a cada 21 de outubro, lá vai ELE em Procissão. O manto sagrado é mudado tão somente duas vezes por ano: durante a Semana Santa (cor roxa); durante o Festival do Cristo Negro (cor de vinho tinto). É ele usado uma única vez e é sempre doação de anônimos, o que resulta em alguns bastante simples e outros luxuosos em demasia.

A efígie, representando Cristo carregando uma pesada cruz, permanece num pódio à esquerda do altar principal, mas é transportada para o centro da Igreja, quando do Festival, que figura como o maior evento de Portobelo. Reúne cerca de 60.000 peregrinos vindos não só do Panamá, mas de outros recantos distantes, como do continente europeu, dos Estados Unidos e de outras nações latino-americanas. De fato, a particularidade do Festival do Cristo Negro é que, de acordo com a fala dos nativos, em sua maioria, os devotos são ex-presidiários, entre assaltantes, ladrões e traficantes de drogas. Juram ter se livrado das terríveis grades das fétidas cadeias, graças à intervenção do bondoso Cristo. Seguem de joelhos pelas ruelas de pedregulhos. Com certa frequência, além do sangue que jorra dos joelhos, são açoitados por familiares ou amigos para que não voltem a infringir as leis... Há quem siga rastejando com mãos e joelhos... 

Isto justifica o apodo do Cristo Negro, no Panamá, como “O Padroeiro dos Criminosos.” E ELE prossegue com seus caprichos: deve ser devolvido à Igreja exatamente à meia-noite. Nem antes. Nem depois. Torna-se extremamente pesado para ser carregado! E mais! Poucos sabem que uma das principais escolas de samba de nosso Rio de Janeiro, Estácio de Sá, agora, carnaval 2019, homenageou o Cristo Negro de Portobelo com o enredo “A fé que emerge das águas!” Eis o Cristo Negro: do Panamá para a Estácio de Sá.




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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”