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RANGANATHAN E OS PRINCÍPIOS DE CATALOGAÇÃO DE PARIS, 1961: PARTE 1 DE 2

Na disciplina de catalogação descritiva, ministrada nos cursos de Biblioteconomia, aprende-se a respeito da Conferência Internacional sobre Princípios da Catalogação, realizada em 1961, na cidade de Paris - França. 

Conferência que teve o propósito de estabelecer, internacionalmente, as bases da normalização dos processos catalográficos e de indicar as funções e os objetivos do catálogo bibliográfico. 

O evento foi resultado do esforço da Federação Internacional de Associações de Bibliotecas e Instituições – IFLA. Tornou-se ponto marcante na história da colaboração e normalização internacional, bem como da evolução dos conceitos, inovações dos processos e aplicações catalográficos.

Se a Conferência marcou as profundas transformações na catalogação, a sua preparação é uma história a parte por envolver personalidades importantes da história da Biblioteconomia. Dentre as personalidades envolvidas encontra-se Shiyali Ramamrita Ranganathan – S.R.R.

A ideia para a Conferência partiu da Unesco, durante encontro conjunto promovido com a IFLA, na cidade de Zagreb, em setembro de 1954. Na época, consultado, Ranganathan propôs a formação de um comitê de catalogação pela IFLA, para coordenar um encontro internacional. Neste sentido, ele organizou uma sequência de questionamentos que considerava prioritários, sendo principal o problema da “autoria corporativa”. Ainda, no propósito preliminar da Conferência, ocorreu em julho de 1959, encontro com representantes de várias escolas de Biblioteconomia sobre o tema da catalogação. 

O encontro trazia uma finalidade importante: disseminar o entendimento junto à comunidade bibliotecária, de que o catálogo bibliográfico é uma ferramenta e a sua criação, independente de quem fosse o catalogador, deveria ser impessoal. Da mesma maneira, independente de quem fosse o usuário, o catálogo deveria ser sempre o mesmo. Assim, poderia ser pensado sua produção centralizada, reduzindo os seus custos.

Na sua opinião, o grande problema estava no fato da coleção de uma biblioteca ser diferente da coleção de outra biblioteca. Aspecto que tornava praticamente impossível, a produção massiva de registros catalográficos para todas as bibliotecas. Entendia que a entidade bibliográfica capaz de gerar uma produção padronizada e massiva, seria apenas a entrada da obra. A alternativa, portanto, seria centrar atenção com a “entrada principal”, que poderia ser estabelecida de forma centralizada. Cópias poderiam ser fornecidas a qualquer biblioteca. Isto teria implicações na produção da entrada principal de cada obra, como um documento independente. Em síntese, um centro bibliográfico produziria fichas matrizes com a entrada principal para fornecimento às bibliotecas.

Ranganathan pensava em um modelo de controle bibliográfico, baseado em um sistema internacional de intercâmbio de dados catalográficos. Vale lembrar que ele foi idealizador da catalogação na fonte, e que se estava nos anos de 1950, onde formatos legíveis por máquina iriam ainda ser gestados no ambiente das ideias. 

Muito do que é descrito, sob o prisma atual das inovações tecnológicas na catalogação descritiva, parece arcaico, mas são as bases, por exemplo, da OCLC (Online Computer Library Center) e do VIAF (Virtual International Authority File).

Entretanto, S.R.R. tinha consciência das limitações de sua proposta. Observou que se o centro bibliográfico elaborasse cópias antecipadas, teria problemas de armazenamento. Entendia que o número de cópias de fichas matrizes da entrada principal de uma obra, provavelmente, encomendadas pelas bibliotecas, não poderiam ser determinadas no momento da sua produção. Alguns fichários logo estariam esgotados. 

A moderna tecnologia (da época) para produção de cópias da ficha matriz poderia ser mantida em estêncil ou qualquer outra tecnologia equivalente. E as cópias poderiam ser geradas quando necessárias, na medida exata da ordem de demanda. Esse aspecto reduziria, ainda mais, o custo da catalogação.

Mas, enfatizava, ainda, a existência de outros obstáculos para a adoção de uma economia racional do processo catalográfico. Um primeiro obstáculo era a tradição. 

Para ele, a inclinação pela defesa da tradição obstrui a luz da razão em todas as esferas de conhecimento. Assim, toda inclinação radical deve ser quebrada, e quebrada pela continua propagação de novas ideias por profissionais que caminham adiante da profissão bibliotecária, ao contrário dos que se deslocam lentamente. 

Outro obstáculo, decorria do espírito individualista ou liberal, como era o conceito divulgado no século XIX. Ranganathan comenta que, em 1948, ao abordar bibliotecários do norte da Inglaterra, destacou a economia proporcionada pela catalogação centralizada. Porém, um dos presentes na plateia invocou John Morley, Leslie Stephen e outras luzes do liberalismo, para concluir que os profissionais do norte da Inglaterra tinham fé no liberalismo e estavam compromissados com isso. E não entregariam a sua liberdade na catalogação, para qualquer agência central.

Segundo Ranganathan, era uma falsa aplicação do liberalismo, da liberdade e do individualismo. Certamente, não haveria retorno adequado, se aplicado este entendimento para todas as ferramentas de uso universal. E, esse entendimento, por exemplo, não fora aplicado na produção de parafusos e porcas para: indústria automotiva, têxtil ou mesmo panificadora. Aceitamos comprá-los de um centro produtor, e ao fazê-lo não houve rendição das liberdades. Então, o mesmo deveria ser com os registros de catálogos bibliográficos.

Porém, o principal obstáculo era o Código de Catalogação. A utilização de diferentes códigos por diferentes bibliotecas tornava a opção da catalogação centralizada verdadeiramente impossível. Bibliotecas que buscassem o benefício econômico da catalogação centralizada, deveria adotar um código padrão. 

Como em qualquer área de conhecimento ou de produção, a aceitação de um padrão era e é a regra. Assim, instituições nacionais de padronizações promovem padrões comuns em seus territórios. 

A promoção acordada de um código padrão deveria ser relativamente fácil. Segundo Ranganathan, o maior grupo de consumidores e de produtores de catálogos pertenceria às bibliotecas do setor público. A adoção de código único somente eliminaria a variedade de registro, ao longo do tempo. Era importante que qualquer país, independente do seu estágio bibliográfico, adotasse um padrão único de código. 

Essa adoção, não era uma recusa a variedade de códigos e nem a melhoria de um código padrão, de tempos em tempos. Afinal, não se pode congelar um código para sempre. 

Entendia que o incentivo à melhoria de um código é gerado a partir do contexto leitor-bibliotecário de referência. Este contexto nunca morre, ao contrário, está sempre em mudança. E, mais cedo ou mais tarde, essa mudança indicará as melhorias que podem ser feitas no código de catalogação. Assim, a adoção de um código padronizado não mataria o pensamento original ou criativo e, também, não eliminaria a oportunidade ou a necessidade de se repensar a catalogação realizada.

Em seus questionamentos, comenta que a grande dificuldade, experimentada na catalogação, era a descrição de livros estrangeiros. Essa dificuldade decorria de várias causas e, dentre as causas, estava a tradição, o individualismo e a resistência à padronização catalográfica. Além disso, contribuíam o prestígio nacional, ou seja, a forma adotada pelo individualismo que dificultava uma relação cooperativa internacional. 

Ainda, nesta classe de obstáculos, se inseria o reconhecimento e o tratamento da autoria corporativa, a resolução de conflitos da autoria, dos homônimos e o tratamento dos nomes de colaboradores, das edições e notas. 

Na reunião da IFLA, realizada em Zagreb, Ranganathan ficara satisfeito com os bibliotecários alemães por considerarem aceitar discutir a autoria corporativa. 

Entretanto, observou a existência de um quinto obstáculo que era a diferença cultural entre os grupos humanos. Esta diferença cultural estava intimamente tecida na estrutura do nome das pessoas, no número de palavras contidas nele, a amplitude relativa dos grupos de palavras a partir das quais cada uma, no nome da pessoa é grafada. A presença ou ausência de inclusões removíveis e inamovíveis do nome. Os catalogadores não podem dissolver essas diferenças. Este era um obstáculo real e insuperável. 

Também, a existência de um sexto obstáculo, decorrente das variações em diferentes línguas – a morfologia, sintaxe, escrita, marcas de pontuação e etc. Isto também era um obstáculo real.

Esses obstáculos, na opinião de Ranganathan tornavam a elaboração de um código de catalogação internacional completo e detalhado impraticável ou quase impossível. Ainda assim, não significava que os benefícios da catalogação centralizada não pudessem ser promovidos por um país, ou por grupos linguísticos. 

A organização necessária para desenhar essa ajuda, fora descrita no Heading and Canons. Para ele, catalogação centralizada promoveria uma redução do custo da catalogação de livros estrangeiros e livros nacionais em 79%.

No relato da sua participação nos preparativos para a Conferência de Paris, ele enumerou uma série de problemas considerados incômodos à catalogação, a saber:

§ Aqueles que admitiam estar comprometidos com o acordo para um código de catalogação internacional;

§ Aqueles que admitiam estar comprometidos com o acordo para um código de catalogação nacional ou regional;

§ Aqueles que admitiam vincular o código de catalogação internacional aos códigos de catalogação nacionais ou regionais;

§ Aqueles que admitiam estar em uma posição mais à esquerda para um código de catalogação local suplementar, que satisfizesse o “Princípio da Variação Local” (Principle of Local Variation); e

§ Aqueles que pediam por mais estudos sobre o tema, além de um intercâmbio entre os cursos de Biblioteconomia no que se referia ao ensino da catalogação.

Com relação ao “Princípio da Variação Local”, é um dos pressupostos de Ranganathan, no qual nenhum código pode funcionar, internacionalmente e com sucesso, sem que tenha alguma previsão de consideração local, devido a existência de muita diversidade nas publicações em várias línguas. Assim, deve haver instruções claras em um código de catalogação internacional sobre aspectos a serem abordados em um código nacional. Da mesma forma, esse código nacional deve mencionar aspectos para visualização em um código local. Por exemplo, no inglês há o uso da maiúscula, em formato pequeno e itálico, mas em outras línguas como hindi, isto não existe. 

Ranganathan, também destacou que muitas conferências se revelam ineficazes devido à refração na comunicação entre os participantes. O motivo da distração surge no plano das ideias e no plano verbal.

No plano das ideias, considerava que o objetivo de uma conferência é colocar as diferenças das ideias de forma precisa e acentuada. Isto permite que os participantes vejam as diferenças com toda clareza. Aspecto que leva a um rápido acordo sobre pontos simples ou não essenciais. Superada a fase anterior, pode-se concentrar sobre diferenças substanciais aumentando a chance de reduzir, gradualmente, a diferença por meio da discussão e do consenso. Este é o melhor retorno a ser obtido do investimento de tempo e dinheiro, e do poder humano em organizar e realizar uma conferência.

Quanto ao plano verbal, está relacionado ao desenvolvimento do trabalho de forma eficiente e com o plano das ideias, eliminando as possibilidades de ocorrer nuvens confusas que emanam do plano verbal. 

Assim, durante a reunião de 1955, em Bruxelas, nuvens por vezes ameaçavam ocultar os problemas. Embora houvesse apenas uma dúzia de participantes, a comunicação falhou com frequência por causa de uma "babel de terminologias" - e não uma babel de línguas como de costume. Situação que exigiu disciplina considerável no uso preciso dos termos, sem sinônimos. A dificuldade de olhar diretamente para os fatos (nu e cru), induz as pessoas a procurarem refúgio na retórica e na verborreia. 

Isto cria dificuldade na própria comunicação pessoal, e é a pedra na qual as conferências se quebram. Ranganathan definiu a questão da conferência em duas: 

1) As conferências políticas nas quais a inconsistência verbal é deliberadamente procurada para esconder a avaliação das ideias criadas pela paixão e lealdade para com o partido político ou a nação;

2) As conferências científicas, onde não há necessidade de ser influenciado por emoções de qualquer tipo. O objetivo é declarar-se para obter a verdade científica que leve a realizar um trabalho ou à compreensão de um problema.

Deste ponto de vista, destacou-se que um trabalho importante, da Reunião Preparatória da Conferência de Paris, ocorrida em 1959, deveria ser o de resolver a terminologia técnica a ser utilizada como meio de discussão. 

E a terminologia teria de ser estabelecida de imediato para uma maior familiarização que favorece seu uso e compreensão, sem nenhum esforço consciente para tanto. Entendia que a terminologia deveria usar uma linguagem natural como metalinguagem. 

A análise baseava-se no trabalho realizado na Índia, desde 1953, e com o qual o Comitê de Documentação do Indian Standards Institution (atual Bureau of Indian Standards) publicou como uma padronização terminológica para termos de catalogação. O trabalho também foi inserido na "Parte 1 das terminologia" do “Classified Catalogue Code – CCC, da autoria de Raganathan, cuja primeira edição publicou-se em 1934. 

Esta norma serviu de base para as suas reflexões e proposições a serem apresentadas ao Comitê preparatório da Conferência de Paris, em 1959. As referências às seções do CCC, contendo a definição para cada termo técnico foi fornecida por SRR, e ao elencar os problemas começa pelos princípios normativos.

Sua intenção era destacar necessidades preliminares que permitissem à Conferência chegar ao resultado desejado e evitasse qualquer inconsistência dos mesmos, e assim estabelecer concordância com os Princípios Normativos, esses seriam usados como uma pedra sólida. 

Os princípios, no campo da Catalogação, têm a implicação com as leis fundamentais da Biblioteconomia como requisitos das fronteiras estabelecidas pelas exigências sociais, de um lado, e os requisitos da catalogação por outro. 

Os princípios normativos estavam expostos na parte 0 do CCC.; e Ranganathan sugeria que, não havendo outra configuração de princípios normativos disponíveis, esses poderiam ser usados como documento de trabalho para a reunião preliminar de 1959. Podendo ser alterados e melhorados conforme fosse mais adequado.

Finaliza-se a primeira parte do texto, no qual se destaca as ideias de Ranganathan para a constituição e as dificuldades de um código de catalogação internacional. Além da preocupação com a uniformidade dos cabeçalhos de entrada principal para nomes de pessoas e de entidade corporativa.

Indicação de leitura:

Raganathan, S. H. International catalogue code: paper B. Annals of Library and Information Studies, vol.6, n.1, p. 13-20, Mer 1959. Disponível em: https://goo.gl/LptKXA


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.