REFLEXÕES ÉTICAS


SOBRE O ENVERGONHAMENTO: REFLEXÕES ÉTICAS NO AMBIENTE DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS SOBRE POSTURAS QUE REPROVAMOS MAS REPRODUZIMOS

“Qual a coisa mais humana para você? – Poupar alguém da vergonha”

(NIETZSCHE, 2012, p. 165) 

Formada a partir de uma cultura católico cristã, sempre tive resistência (por preconceito e desconhecimento) em ler obras do autor de “O Anticristo”... A partir dos estudos de doutorado e da necessidade de refletir de maneira mais aprofundada sobre questões éticas e sobre a genealogia da moral, Friedrich Nietzsche se “instalou”, como na composição de Chico Buarque, “feito um posseiro dentro do meu coração”. Estabeleceu-se como uma “dinamite” (como ele se intitulava), explosivo, (SAFRANSKI, 2011) des(cons)truindo coisas já estabelecidas para que eu pudesse reconstruí-las, não só nos estudos e ideias que permeavam minhas pesquisas acadêmicas mas em minha vida pessoal também. 

O pensamento que inicia este texto é deste desencarnado, porquanto encarnado no milagre da palavra - “falando” e “explodindo” por aí – um de seus muitos aforismos que quando diante de mim, conduz para inúmeras situações e contextos. Lembro, por exemplo, do meu processo educacional, na família, escola e ambientes de interação social quando era criança e adolescente, e percebo o quanto houve de envergonhamento nestas vivências. Envergonhamento enquanto repreensão pública acerca do comportamento, das espontaneidades, das escolhas, de fatos que ocorrem conosco, das dúvidas que nos induzem a questionamentos de coisas que já estão dadas.

A partir da colocação de Nietzsche, recordo frases que escutei e que intencionavam uma “boa educação”. Essas frases eram ditas sempre diante de uma “plateia”, talvez para que todos pudessem atestar o “zelo” de quem educa e orienta, bem como, a vergonha de quem “erra”, de quem está “fora do trilho” dos padrões de comportamento aceitos em cada época. Para o envergonhado (e também para a plateia), cristaliza-se o “medo” de passar por tal situação, o que, de certa forma, atesta a “eficácia” deste modelo “educacional” de aprendizado sobre uma conduta aceita socialmente. 

O repertório de frases que escutei é grande e estou certa de que não inundou (ou inunda) somente os meus espaços familiares, escolares e sociais. Coisas do tipo: “isso não é roupa de menina direita”, “está falando errado, não é pra ‘mim’ fazer é para ‘eu’ fazer”, “não ria alto, rir alto é sinal de pouco juízo”, “não pegue esse último pedaço de fruta, não está vendo que tem mais gente para comer?” 

Lembro o sentimento de mal estar após as repreensões diante da presença de outras pessoas e lembro também que fiz isso com meu filho. Certa vez, quando tinha oito anos, vi Pedro comer macarrão na casa de amigos de maneira rudimentar sob o olhar atento (e censurador, pelo meu julgamento) de adultos presentes (outros pais). Com um tom de bom humor, falei com minha autoridade de mãe: “– Filho come direito, está parecendo um homem pré-histórico”. Pedro não gostou e posteriormente verbalizou sobre seu sentimento de vergonha (em secreto, só entre nós dois, sem me envergonhar) e, sabiamente, no desabafo, ainda advertiu: “homem pré-histórico nem comia macarrão”. 

Por que envergonhamos? Se fosse tentar discorrer sobre a pergunta sem antes fazer a associação prévia com o processo de educação - uma ideia atrelada a uma benfeitoria no contexto das relações familiares e de instituições encarregadas de cuidar do indivíduo - arriscaria dizer que envergonhamos para machucar alguém, para fazer o mal. Porque, em meu entendimento, não é um sentimento agradável se sentir envergonhado diante de ninguém, não traz bem estar ou a ideia de respeito e cuidado com o ser. 

Estabelecer relação entre a interação entre os indivíduos e o ato do envergonhamento é proposta principal na construção deste texto. Mas esta escrita deveria estar no contexto da Ciência da Informação... e está! Está porquanto se compromete com a reflexão ética de pessoas que se envolvem com trabalhos em unidades responsáveis pela mediação da informação - e informação para todos, não somente para um grupo específico. Ao longo do texto abordo situação específica de envergonhamento que ocorre em bibliotecas públicas, situação que tenho me dedicado a refletir e estudar mais atentamente.

Norbert Elias foi o primeiro a despertar em mim curiosidade sobre a relação do sentimento de vergonha com o processo civilizador. Em suas obras, Elias destaca a questão dos padrões de etiqueta e a conduta dos indivíduos na sociedade de corte, sociedade com gente que se considerava de um status “superior”. Padrões de comportamento à mesa, por exemplo, que foram criados e estabelecidos por grupos com determinado poder e que compõem padrões de conduta que se cristalizam e se fortalecem a partir do sentimento de vergonha de quem não os segue – a ideia de que não são “civilizados” os que não mantêm o mesmo padrão de conduta. (ELIAS, 1993, 1994).

Civilização consiste nos instrumentos de que uma determinada cultura dispõe para conservar-se, lidar com os imprevistos, situações inusitadas, perigosas, para superação da crise, para renovação e progresso. (ABBAGNANO, 2007, p. 143). Elias (1993, 1994), nos mostra em seus estudos que os indivíduos e grupos de indivíduos que detém determinado poder, muitas vezes utilizam o sentimento de vergonha e repugnância como mecanismo para mudar ou manter costumes de acordo com seus interesses, causando um distanciamento, gerando distinção entre classes. 

Para além do interesse no estabelecimento de classes distintas, os estudos sobre o processo civilizador de Elias (1993, 1994), revelam também que colocar em dúvida costumes sedimentados é processo de desintegração da realidade, de mudança. Costumes e valores são construídos e reconstruídos permanentemente, resultado do ser ético que reflete sobre suas ações. Essa condição pode se expandir para a realidade do trabalho, incluindo a do trabalho realizado em bibliotecas e na perspectiva deste texto, mais especificamente, das bibliotecas públicas.

Em sua tese sobre bibliotecas comunitárias, Machado (2008, p. 97) entrevistou moradores de rua, albergados e catadores de lixo. Estes interlocutores de seu estudo esboçaram alguns motivos para não frequentar uma biblioteca pública, disseram não se sentir bem no local e que não tinham coragem “de entrar lá descalço” - um deles lembrou: “uma vez entrei e um guarda começou a me seguir”. O relato ressalta o sentimento de humilhação produzido por atitude que gera envergonhamento. Neste estudo a autora revela que a biblioteca comunitária representa um movimento em prol de bibliotecas públicas. 

A biblioteca pública brasileira é parte de uma estrutura de Estado e possui potencial de promoção do desenvolvimento dos indivíduos e da sociedade, bem como, o fortalecimento de valores como a igualdade social. Neste sentido, pode parecer estranho relacioná-la com a temática da exclusão social. Entretanto, vários são os estudos que se referem a pessoas deixadas à margem das benesses deste espaço público de informação (ALMEIDA JÚNIOR, 1997a; ALMEIDA JÚNIOR, 1997b; CASTRILLÓN, 2011; MACHADO, 2008; SILVA, 2014).

Com base no discurso de dezoito bibliotecárias que atuam em bibliotecas públicas catarinenses, defendi em 2017 minha tese em que estudei processos de exclusão nestes ambientes de atuação (SILVA, 2017). As falas coletadas servirão de apoio para os próximos textos desta coluna porque levantam várias questões pertinentes e que servem para reflexões éticas. 

Na tese, é possível ter acesso a um discurso que revela práticas nada inclusivas relacionadas a grupos excluídos como moradores de rua, andarilhos, menores de rua, bêbados, drogados, pedintes – desde a dificuldade de acesso ao impedimento de entrada no ambiente - atitudes que geram constrangimento, vergonha e humilhação e que, consequentemente, produzem também um sentimento de que aquele espaço e o serviço prestado não são direcionados para aquele indivíduo ou grupo, não é também deles como um direito. 

Ainda que algumas medidas direcionadas a estes indivíduos figurem no discurso do profissional como protetivas de outros grupos de usuários – crianças sendo protegidas de bêbados, por exemplo – creio que não isenta a responsabilidade do bibliotecário que atua em bibliotecas públicas com estes excluídos. 

Quando o profissional menciona sobre a função social da biblioteca pública, aparece o discurso de trazer bem estar, proporcionar melhoria da qualidade de vida das pessoas, melhoria da própria pessoa, de sua alma, de seu espírito. Essa melhoria é para quem já tem uma vida melhor, para que sua vida fique melhor ainda? Não serve para os bêbados e drogados? Estes são só um problema da saúde e segurança pública ou o profissional - comprometido com o acesso à informação, não o acesso como fim em si mesmo, mas para gerar conhecimento e auxiliar na transformação das pessoas – também é parte da engrenagem social e deve pensar e agir na direção do desenvolvimento destes indivíduos em uma perspectiva mais ampla? 

O “povão” não tem acesso garantido à biblioteca pública e isso também se relaciona com a atuação do profissional que atua nestes espaços. Esse profissional recebeu uma cultura educacional possivelmente alicerçada em processos que incluíram situações de envergonhamento no âmbito das instituições, tanto em sua socialização primária – família – quanto na socialização secundária – escola, universidade, associações, conselhos... Estas situações muitas vezes produzem medo, desencorajam e se tornam modelo de atuação que reproduzimos muitas vezes sem reflexão. 

Se compreendermos a desumanidade do envergonhamento no contexto exposto inspirado a partir do pensamento de Nietzsche, talvez seja possível iniciarmos um processo de mudança em nossos ambientes de trabalho que não dependa prioritariamente de recursos financeiros, mas da nossa capacidade de refletir sobre nossa própria conduta para não reproduzirmos posturas que nos afastem de boas práticas éticas que afetam o desenvolvimento das pessoas e da sociedade em geral. 

Vamos em frente...

Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 

ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Bibliotecas públicas e bibliotecas alternativas. Londrina: Ed. UEL, 1997. 

_____. Sociedade e biblioteconomia. São Paulo: Polis; APB, 1997. 

CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e escrever. São Paulo: Pulo do Gato, 2011. 

ELIAS, Nobert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v. 2.

_____. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1.

MACHADO, Elisa Campos Bibliotecas comunitárias como prática social no Brasil. 2008. 184 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2011.

SILVA, Ana Claudia Perpétuo de Oliveira da. Biblioteca pública do povão?: exclusão social da informação nas bibliotecas públicas do Estado de Santa Catarina nas representações de seus dirigentes. Florianópolis, 2017. 345 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.

_____. É preciso estar atento: a ética no pensamento expresso dos líderes de bibliotecas comunitárias. Curitiba: Appris, 2014.


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ANA CLAUDIA PERPÉTUO DE OLIVEIRA

Docente do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui mestrado e doutorado em Ciência da Informação pela UFSC. Possui graduação em Biblioteconomia pela UFSC e em Ed. Artística - Habilitação em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Integra o Grupo de Pesquisa Informação, Tecnologia e Sociedade, da UFSC. Atuou por quase 20 anos em biblioteca universitária, escolar, comunitária, especializada e em políticas públicas para bibliotecas públicas. Tem como interesse de pesquisa assuntos relacionados à ética em unidades de informação, bibliotecas públicas e comunitárias, relações entre biblioteconomia e arte, ação cultural, exclusão/inclusão em unidades de informação, centros e acervos culturais, relações entre escrita, oralidade e leitura. Aposta na arte como forma de reinventar uma atuação profissional que desenvolva empatia e o compromisso com uma sociedade mais igualitária.