LEITURAS E LEITORES


JOÃO GILBERTO NOLL: PRIMEIRAS LEITURAS

Vida de leitor é sempre recomeço e descoberta. Não fosse assim, talvez a leitura perdesse a graça. Geralmente possuímos nossas narrativas e autores preferidos, mas existem aqueles que ignoramos, que não fazem parte de nosso círculo de leitura. E quando nos encontramos com uma nova autoria, às vezes, nos sentimos inseguros, desafiados por ela. Por outro lado, ao ler, vamos fazendo "ligação" com autores que já freqüentamos; observamos a semelhança ou diferença ao narrar; a melodia das palavras que ecoam em nosso pensamento, de modo que nos encantam e nos permitimos experimentar, mais uma vez, o desconhecido.

Quando lemos mais de uma obra do autor, acabamos por ter idéia de como é seu enredo, seu processo compositivo, vocabulário, entre outros aspectos. No entanto, quando se lê o primeiro romance de autor desconhecido, nem sempre temos clareza para falar sobre ele ou mesmo discernir o porquê nos encantou. Ainda permanecerá a dúvida se nos próximos livros haverá semelhança na estrutura narrativa. Se como o primeiro, vai continuar alimentando a nossa alma.

Já tinha ouvido falar em João Gilberto Noll, mas nunca lido, até que numa feira de livros fui impelido a olhar só para as suas obras, delas escolhi uma, Berkeley em Bellagio(*). Voltei ao título, houve um estranhamento: como Berkeley em Bellagio? São cidades? Personagens? O filósofo? A essas e a outras perguntas, na exploração da capa e orelha do livro, busquei respostas.

A "orelha" do livro foi escrita por Ítalo Moriconi, parecia um bom sinal, pois sou fã dele. Mais abaixo, vi a foto do João, comecei a "lê-la": homem de meia idade, branco, olhar quase perdido, solitário, ombros tensos. Abaixo da foto, fiquei sabendo que João era gaúcho, nasceu em 1946 na cidade de Porto Alegre.

A história, narrada predominantemente em primeira pessoa, por um escritor, professor, originário de Porto Alegre que vive um período nos Estados Unidos e outro na Itália sem, no entanto, perder a ligação com o Brasil. O narrador inicia a história relembrando o período que foi convidado a ministrar um curso no departamento de espanhol e português, da universidade de Berkeley, na Califórnia. Ao mesmo tempo, nos informa sobre sua vida em Porto Alegre, seu ex-namorado, Léo e seu mais recente "caso", chamada Mana. Antropóloga brasileira com quem viveu um caso logo que chegou à universidade.

Posteriormente, o narrador mudou o espaço e o tempo da narrativa, pois se encontrava em Bellagio, Itália, como um dos hóspedes convidados da Fundação americana, passaria um período produzindo lá. Muitos artistas, como ele, desfrutavam do mecenatismo ianque.

Desde o inicio da narrativa, somos invadidos por uma atmosfera de fragmentação espacial, interior e conseqüentemente do enredo. Dói existir e parece não ter perspectiva de cessar. É como se fosse uma onda intermitente de memórias, lucidez e abandono diante de país e de línguas diferentes. E nesse processo o narrador vai "perdendo temporariamente" a memória da língua materna.

O afastamento de suas origens provoca na personagem um efeito "ilha", de exílio interior, potencializado por estar longe de seu país, da sua querida Porto Alegre, tudo isso contrastando com uma crescente libido e, ao mesmo tempo, ampliação da crítica ao imperialismo norte-americano.

O enredo desvela um homem consciente de sua posição diante do modelo do imperialismo, sua vida pessoal fragmentada e uma repugnância de si mesmo, nessa situação de subserviência àquilo que combate. Outro tema recorrente é a sexualidade. Ela funciona, ao mesmo tempo, como uma "libertação" daquele mundo organizado e frio de Bellagio e, também, como um grito de socorro diante da solidão.

É no confronto consigo mesmo que o personagem vai aos poucos recuperando sua história e retorna ao Brasil. Ao chegar a seu apartamento em Porto Alegre, encontra Léo, mas surpresa não pára por aí. No quarto, dormia uma criança, a filha de Léo.

Aos poucos, no convívio diário, há o fortalecimento da intimidade entre o narrador e a criança. Ele torna-se outro pai para a menina, passeia com ela, vai buscá-la na escola. A partir de então é como se o caos interior fosse perdendo a força e o narrador não vivesse mais o tédio e a solidão de antes. É como se a presença da criança apontasse para uma outra perspectiva de vida, de simplicidade, de falta de conflito, de ter o que fazer, de ter com quem se preocupar. Sair de si mesmo, compartilhar.

Logo no início da narrativa, Noll aponta-nos direções: "agora, como futuro professor convidado, dando cursos sobre Clarice, Graciliano, Raduan, Caio (...)." De Clarice Lispector a Caio Fernando de Abreu há predominância da complexidade existencial, do passeio pelo mundo interior, da busca incessante de homem diante de si mesmo. É como se o autor, antecipadamente, sugerisse ao leitor pistas de sua própria narrativa, Berkeley em Bellagio.
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(*) Berkeley em Bellagio , editora W 11, 2003


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.