ALÉM DAS BIBLIOTECAS


A VIDA NÃO É A QUE A GENTE VIVEU...

Agradeço a Eliana Valois, atual presidente da Associação de Bibliotecários do Estado do Piauí, pela lembrança de nosso nome para estar, aqui, hoje, ao lado de alguns amigos, companheiros de jornada, companheiros de profissão. Quando do convite, esclareci, desde então, que não traria um depoimento formal e legal ou algo que o valha. Nenhuma formalidade. 

São 37 anos idos e vindos, lembrados e esquecidos. Reforço, sempre e sempre, palavras que não são minhas, mas que gostaria de tê-las escrito. No preâmbulo do maravilhoso livro, “Viver para contar”, ninguém mais, ninguém menos, do que Gabriel García Márquez, o célebre colombiano, escritor, jornalista, editor, ativista político, afirma, com veemência: “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.”

Gostaria que cada um de vocês assimilasse no coração e na mente a profundidade desta frase. Se assim fizerem, entenderão, com rapidez, que meu depoimento é meramente afetivo, emotivo e intrinsecamente pessoal e intransferível. Falo da ABEPI como uma amante fugidia. Afinal, sua instalação está umbilicalmente vinculada à minha adolescência tardia, ao começo de meu caminhar profissional, ou seja, à minha própria vida. Não consigo desvencilhá-la dos sonhos que nutri quando cheguei ao Piauí.

Previsível ou imprevisível, seguimos todos nós, nosso destino. Ou como querem outros, traçamos nosso destino. E foi assim, pelas mãos do destino, que cheguei a este Estado, em 1969. Recém-formada. Recém-casada. Aos 21 anos, nos braços, uma filha pequenina, de quatro meses. No ventre, um bebê em formação, de três meses. Nas mãos, um diploma de graduação em biblioteconomia e a formação completa em inglês. Na certidão, 21 anos. No coração, todos os sonhos do mundo. Eu que nunca vivera em interior – saí de João Pessoa, onde nasci, para Recife, aos três anos – adaptei-me à rotina de Piripiri, rapidamente, muito rapidamente. 

Dois anos depois, 1971, Teresina incorpora-se à minha vida. Se em Piripiri, ensinara inglês no ginásio e no então “Colégio das Irmãs”, aqui, na condição de primeira bibliotecária do Estado, à frente da Biblioteca Pública, me coube a missão, nem sempre gloriosa, de abrir caminhos e propagar a função de uma profissão, confundida, nesse momento histórico, com a armazenagem de livros em estantes ou de um bando de “bruxos” encarregados de impor aos “pobres” leitores regras rígidas e pouco atrativas. 

Um ano depois, a instalação da Universidade Federal do Piauí. Mediante concurso público, instituí com um pequeno grupo e mais uma só bibliotecária, Maria das Graças Nepomuceno, a primeira Biblioteca Central da UFPI, agora, Biblioteca Comunitária Carlos Castello Branco. Adiante, logo depois, chegam Margô, Cé, Fatinha (hoje, anjo do Senhor) e Geraldo. Os apelidos que perduram até hoje não são em vão. Refletem o clima de harmonia e de amizade verdadeira da equipe. Contávamos, ainda, com os então chamados auxiliares de biblioteca e outros técnico-administrativos, além de preciosos estagiários, muitos dos quais foram, depois, alocados como funcionários da UFPI. Somávamos, então, 54 sonhadores! Os desvãos da memória! Nunca esqueci este número – talvez porque parecesse demasiado para minha vivência diminuta!

De tal forma unida e coesa, nossa equipe deu margem a uma lorota contada de boca em boca em meio às límpidas gargalhadas do então querido e amado reitor, José Camillo da Silveira Filho (que também já desencantou): a Biblioteca não mantém um staff, mas, sim, uma máfia coordenada e afinada. Essa equipe endiabrada, traquina e travessa, contando com uma secretária de competência ímpar, Regina ou Rezinha, pregou grandes sustos à comunidade acadêmica de então, sobretudo, aos administradores e professores. O espanto de alguns, quando retiramos as placas de silêncio. As máquinas de escrever para os universitários redigirem seus textos eram uma inovação, vejam só! “Proibimos a proibição” de que os meninos ou as meninas cochilassem sobre as mesas após o almoço! Fizemos a primeira feira de livros do Estado! A Biblioteca era uma festa! 

Era a década de 70! Era o ano de 1972! Incorporei desde sempre a Biblioteca e a biblioteconomia à minha vida com força total. Consequentemente, participei intensamente da instalação da UFPI. Esta se transformou numa paixão, que perdura até os dias de hoje, independentemente dos desenganos, aliás, que sempre fazem parte dos grandes amores. Não importa. É natural. É o esperado com a sucessão de dias e anos. Mesmo assim, apego-me aos dias límpidos e repletos de luz que ali vivi. 

Adiante, com uma equipe movida por amor, criamos a Associação de Bibliotecários do Estado do Piauí. Adiante, instituímos a Delegacia do Conselho Regional de Biblioteconomia, com a ressalva de que participei do Conselho Federal de Biblioteconomia, como representante da região e do Piauí. Nossa ABEPI data de 1980, exatamente, 13 de novembro, com publicação no dia 2 de dezembro daquele ano, no Diário Oficial do Estado. Surge com o intuito de imprimir à classe bibliotecária o ímpeto profissional de lutar em prol da valorização da profissão junto à sociedade piauiense em geral e teresinense, em particular, e, sobretudo, em busca da ampliação do mercado de trabalho, o que pressupõe investimentos em educação continuada e em propagação da função do bibliotecário. 

Podem vocês perguntar: por que tanta alusão à UFPI? Face à ausência de infraestrutura para a manutenção da ABEPI, problema que persiste até hoje (e que fragiliza em muito nossa luta), em tudo, tivemos o apoio irrestrito da Universidade: para instalação na própria Biblioteca, serviço de protocolo, material de consumo e outras coisinhas mais. E o interessante: os maridos entraram na jogada para valer. Ênfase para Hélio Matos (hoje, anjo do Senhor) e Dilermano Martins Lima. Na ata de criação, estão 14 nomes, quase todos ainda engajados na profissão de bibliotecário. Obviamente, alguns atuam de forma direta. Outros, de forma mais distante ou mais silenciosa. Além de Fatinha (que partiu aos céus) e de meu nome, lá estão, em ordem sequencial: Arlette Sorensen, Geraldo, Francisca Soares, Francisca Elda, Antonia Maria, Susana, Socorrinho Reinaldo, Cé, Ana Maria, Valdiné, Patrícia e Margô. 

Tentamos, sempre, ações inovadoras: cursos organizados e oferecidos aos colegas e / ou à comunidade; tradução de capítulo de livro para circulação; palestras; e até uma publicação periódica. Recupero o número um em seu original e trago até vocês, junto com minha primeira carteira de associada. Trata-se do ABEPINFORMA. Simplório. Ingênuo. Representa o que poderíamos fazer naquele momento. Proposta de publicação trimestral e que some em 1984, após seu segundo número. No entanto, torço para que todos que estiveram ao meu lado naquele dia que se faz longínquo, há 37 anos, prossigam acreditando no lema universal em torno da união de categorias profissionais, tal como consta da programação desta noite festiva: “O movimento associativo é da maior importância para a defesa dos interesses coletivos. Sem união dos esforços, não há conquistas.” 

Acrescento por minha conta, risco e convicção: não basta ter o status de conquistas. Há de ser conquistas duradouras. Estas exigem mais do que vinculação profissional. Clamam pela manutenção do companheirismo em vez da competição acirrada e desleal; responsabilidade social em vez de atitude passiva diante da sociedade; competência em vez de arremedos técnicos; ética em vez de comportamentos reprováveis e infâmias jogadas aqui e ali. Enfim, conquistas duradouras exigem a existência diáfana de anjos e não de abutres...

Mas, como disse antes, “seguimos, todos nós, nosso destino.” Desde cedo, segundo tios, primos e irmãos, “nasci professora.” Aula para amigos, irmãos, desde muito cedo. Cresço em meio a livros, revistas, almanaques, enciclopédias, quadrinhos e assim por diante. Sofro influências decisivas de meu pai, como escritor e jornalista sem diploma, verdadeiro autodidata, e, também, de minha mãe, professora primária nos moldes de então, e, portanto, grande formadora. Deles, herdo o gosto pela leitura e o amor ao ensino-aprendizagem. De meu pai, porém, recebo como herança o temperamento irrequieto, a vontade de escrever – muitos e muitos escritos – e a crença incessante no outro. Quando criança, prefiro livros a bonecas. Quando adolescente, prefiro livros a namorados, embora, adiante, nem sempre tenha sido assim (risos!!!). 

Então, no ano seguinte, solicito oficialmente afastamento da filha recém-nascida – nossa ABEPI. Mas a deixo em boas mãos. Assume a vice-diretora, Cé ou Maria Celeste Mesquita Moura. Parto em busca de aprimorar minha formação docente. Torno-me professora “de carteirinha.” Consigo bolsas de estudo em agências brasileiras e estrangeiras de financiamento. Aperfeiçoamento. Especialização. Mestrado. Doutorado. Pós-doutorado. No entanto, em que pesem diplomas e avanços tecnológicos, continuo crendo que a presença humana, o contato face a face e o acompanhamento sistemático persistem como essenciais em qualquer esfera da vida humana, incluindo a docência e o movimento associativo. 

Refiro-me àquele professor ou àquele profissional, que, além de dose razoável de informações e conhecimentos em áreas específicas, mantém o dom de repassar informações; cultiva a complacência a fim de suportar as diferenças; valoriza a criatividade para deixar a rotina “não pegar”; exercita a coragem para enfrentar os desafios permanentes; enfrenta a modernização constante; e se esforça continuamente em busca da perfeição, como se fora ela possível! 

E mais: para que o professor ou o bibliotecário persista como peça fundamental na educação precisa, essencialmente, ter coração de professor ou de bibliotecário. O que é ter coração de professor ou de bibliotecário? Eu digo: é ter amor, muito amor. É ter afeição, muita afeição. É ter respeito ao outro. É ter dignidade. É ter garra. É ter vida. É viver a vida. E mais, é amoldar a máscara de palhaço para enfrentar as tristezas de ordem pessoal, vencer as hostilidades em momentos de cobrança, disfarçar a falta de sintonia com algum “guardião da paróquia.”

Por tudo isto, confesso, não importam os incrédulos ou os que desconhecem meu esforço inicial em impulsionar a biblioteconomia no Estado. Nunca afastei a biblioteconomia de minha vida. A prova mais evidente é que persisto há quase 10 anos como docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba. Meu ganho financeiro é zero. Meu ganho profissional é impossível de ser mensurado. Mesmo sem estar efetivamente no exercício da profissão, paguei até 2015, o Conselho Regional de Biblioteconomia, como uma forma de dizer “estou presente.” 

Claro está que nem tudo são flores, trovas e cânticos. Há uma face obscura que sombreia a harmonia pretendida entre mim e o ensino da biblioteconomia. Estive na graduação, aqui, no Piauí. Como alguém passional, para quem amor e paixão são ingredientes básicos de sobrevivência, tanto no campo pessoal como no profissional, não tenho o menor pudor em cantar e decantar o sentimento de fracasso de então. Mas as derrotas fazem parte do viver...

Ademais, é evidente que, como todos vocês, fiz escolhas ao longo da vida. Escolhas certas. Escolhas equivocadas. Mas, antes de tudo, foram e são minhas escolhas. Verdade que lamento sonhos perdidos. Mesmo assim, olho para trás, e, de verdade, não me arrependo. Afinal, sou mestra por vocação. Amor desmedido, e, por isso mesmo, às vezes, incompreendido. Com os anos, os amores vividos e perdidos, as traições de falsos amigos e o esquecimento de muitos – já que nada tenho a oferecer como moeda de troca no jogo em que sindicatos, associações, academias, etc. se transformaram – me fazem chorar. Há muitas portas fechadas, reconheço. Há muitas exclusões. Há muitos senões no cotidiano de agora...

Nada importa. Sigo meu caminhar. E não se trata de um caminhar trôpego ou a esmo. Ao contrário. Sigo, insistentemente ou bravamente, lutando pela expansão da inclusão social de nossa gente, com a certeza de que há quem, aqui e acolá, acredite na legitimidade de minhas ações e na imensidão da responsabilidade social que cumpro ante a realidade de um século XXI espetacular, coalhado de inovações tecnológicas e, paradoxalmente, de enfermidades que afetam os seres humanos no coração e na alma, sejam eles bibliotecários ou não! 

Por fim, o que fiz pela biblioteconomia do Estado do Piauí? O que fiz pela ABEPI? O que fiz pelo Conselho Regional de Biblioteconomia? O que fiz por colegas e alunos? Não sei! Minha contribuição pode ser considerada ínfima. Minha contribuição pode ser considerada razoável. Minha contribuição pode ser considerada valiosa por todos aqueles que consideram a educação um bem maior. Na realidade, minha trajetória é pautada por uma luta quase insana em busca de melhor qualidade de ensino e de vida. É uma existência inteira dedicada ao ensino, à pesquisa e à extensão, no âmbito da biblioteconomia, da ciência da informação, do jornalismo, da educação e áreas afins, assegurando minha atuação local, regional, nacional e internacional, desde 1968 até os dias atuais, de tal forma que lanço mão de belo trecho de Jacques Le Goff: “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a servidão dos homens.” 

Logo, sem arrependimentos, sem tréguas, sem rodeios nem atalhos, termino insistindo nas palavras de García Márquez, quando diz: “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Termino insistindo em minhas próprias palavras iniciais: este é um depoimento meramente afetivo, emotivo, pessoal e intransferível. OBRIGADA

Nota

Depoimento proferido no evento promovido pela ABEPI em homenagem às Diretorias da Associação: 1980-2017, dia 21 de setembro de 2017.


   1809 Leituras


Saiba Mais





Próximo Ítem

author image
IRÃ: FLORES, SONHOS E DESERTOS
Novembro/2017

Ítem Anterior

author image
O UNIVERSO POLÊMICO DA TRAIÇÃO
Setembro/2017



author image
MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”