ALÉM DAS BIBLIOTECAS


O UNIVERSO POLÊMICO DA TRAIÇÃO

Na edição de “Veja” da semana passada (13 set. 2017), a atriz Deborah Secco, numa das seções mais nobres da revista, qual seja, as chamadas páginas amarelas, dedicadas à entrevista de pessoas de destaque no cenário nacional em diferentes segmentos, admite ter traído seus eventuais companheiros, em texto intitulado “Traí, sim, e daí?” 

Inesperadamente, na “Veja” seguinte (20 set. 2017), bate todos os recordes: seu depoimento ocupa a primeira posição dentre os assuntos mais comentados pelos leitores do polêmico semanário (amado ou odiado; revelador ou conservador; a depender do gosto do “freguês”), extrapolando até temas ligados ao lamaçal político do país, como matérias alusivas ao depoimento do ex-ministro Antonio Palocci e aos tentáculos da empresa JBS no Poder Judiciário brasileiro. É a constatação de que a traição, em meio aos relacionamentos amorosos, constitui, inevitavelmente, assunto que conduz a interrogações sem fim e a questionamentos recheados de posições extremas, que supõem amor e desamor; promiscuidade e modernidade; fragilidade e sem-vergonhice. 

É a regra implícita, indizível e incômoda que permeia o convívio entre os seres humanos: caso não pretenda contrariar os que lhe cercam, não trate de questões polêmicas. Ou melhor, não traga à tona os dois lados de uma questão. Silencie ou adira ao ponto de vista do interlocutor. Sem sombra de dúvidas, nada é mais cômodo ou mais próximo da mediocridade do que acreditar, com convicção, de que há temas que não podem ser revisitados, porque representam a verdade absoluta de determinados segmentos sociais. Não importa se tal verdade está entulhada de subterfúgios e, quiçá, de meias verdades. 

No caso da traição declarada da atriz, estou dentre os leitores que se posicionaram frente à sua fala na seção de cartas da revista. Mil rótulos cercam a mulher em foco. Justos ou injustos. De qualquer forma, estereótipos são conceitos imprecisos, reducionistas e, invariavelmente, preconceituosos, com os quais impregnamos tanto a imagem de uma pessoa, seja ela quem for, para o bem e para o mal, quanto o perfil de uma localidade ou de uma sociedade: é o francês, intelectual; o brasileiro, espertalhão; o italiano, vozeirão; o alemão, grosseirão, e assim por diante. Por tudo isto, a mim pouco importam os rótulos atribuídos a Deborah Secco que, no caso em discussão, impõe-se como fêmea corajosa e realista.

Além do mais, é na esfera da discussão sobre traição, que percebo, com nitidez, como os tempos pouco mudaram em relação ao sexo feminino, por mais que se alardeiem grandes transformações em prol da mulher. Seu lugar está garantido no mercado de trabalho, nos bancos das universidades, em postos de comando de organizações e até de países. Mas, quando o tema é a vida amorosa, a impressão que se tem é de pura estagnação. Sei, a cada dia, de perdões concedidos por mulheres traídas. Sei, a cada dia, de perdões negados por homens traídos, e, quase sempre, por pressão social: por que não existe em nosso idioma o feminino daquela palavrinha grosseira e pejorativa que se emprega para os homens que, por uma causa qualquer, viveram as sobras do sono intranquilo da mulher amada? 

Por exemplo, mais ou menos recentemente, em meio às comemorações de um dia 8 de março qualquer (para quem não lembra, “Dia Internacional da Mulher”), recebo e-mail de uma amiga querida, de um Estado perdido na imensidão do Brasil. Diante da traição permanente do marido, conselhos de irmãos, sogra e amigos. Eis algumas das “pérolas” expressas literalmente: “Menina, a mulher precisa de um homem dentro de casa nem que seja para temperar a goela”; “Finja que não está acontecendo nada”; “Não perca seu marido, depois vai me agradecer”, etc. Por tudo isto, aos 69 anos, filhos e netos, não me preocupo em chocar quando afirmo que a traição nem sempre significa falta de amor. Podemos não ser traídas por toda uma vida, sem que tenhamos sido necessariaente acariciadas e amadas.

Com frequência, a fidelidade está ligada a preceitos familiares, religiosos, econômicos e até políticos. Conveniência pura. O inverso é verdadeiro: podemos não trair por simples convenção social. Em ambos os casos, às vezes, a traição decorre da monotonia que atravessa dias e semanas iguais. Pijamas a postos e TV ligada 24 horas. Lingeries esquecidas e flores jogadas fora. Mas o amor está lá, perdido num ponto qualquer: basta escalar a montanha ou atravessar a correnteza do mar...


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”