LEITURAS E LEITORES


LITERATURA: EXTENSÃO DA MEMÓRIA E DA IMAGINAÇÃO

Pensar em literatura, antes de tudo, nos remete à leitura de um modo geral e, conseqüentemente, aos livros; ainda que os objetos de leitura eletrônicos (cd-rom, Internet, etc.) também o façam. No entanto, vamos nos deter ao impresso, ao livro, porque esse objeto cultural ainda está muito distante de grande parte de nossa população.

Hoje, quem não tem acesso ao escrito, à leitura, tem menos possibilidade de ser aceito socialmente, de ser respeitado como cidadão e pode comprometer sua vida e de seus de dependentes, se assim os tiver.

Por que então a leitura e a literatura podem ser tão importantes para o desenvolvimento humano? Que fatores apresentam? Qual sua importância para a sociedade atual? Quando lemos um livro, automaticamente, somos lançados num universo que contém fortes elementos da existência humana: tristezas, alegrias, sentimentos ocultos, angústia, esperança, confronto com o insólito, inóspito. A partir de então, estabelecemos relações com o que lemos, interligando-o à nossa própria experiência ou a outras conhecidas.

Cada obra lida desperta-nos inúmeras correlações com as quais nos identificamos ou estranhamos. Ao estabelecer analogia com outras obras lidas, entra em funcionamento conjunto nossa memória e imaginação e vamos resgatando vivências da leitura de mundo, da leitura da escrita e, simbioticamente, agregando nossa imaginação por meio do livro, como Borges (1972), afirmara:


Dos muitos instrumentos inventados pelo homem creio que nenhum pode comparar-se, sequer de longe, com o livro, porque os outros instrumentos são extensões, mecanismos do nosso corpo. O telescópio, o microscópio, são extensões, mecanismos de nossos olhos. As armas, o arado são extensões de nossos braços (...). Como já disse, extensões do corpo: ampliaram as possibilidades do corpo humano. Por outro lado, o livro é uma extensão da memória e da imaginação.

Quando olhamos para um livro, não é apenas um objeto escrito à nossa frente. Na verdade cada livro condensa, no mínimo, um modo diferente de olhar para o mundo. Assim, numa biblioteca podemos nos encontrar com autores de outras épocas, pensamentos que complementam os nossos, outros que antagonizam com os nossos, outras maneiras de ver o mundo.

Por exemplo, lendo Plutarco, escritor e historiador da Antigüidade Clássica, somos transportados para a época de Alexandre, rei da Macedônia (356-323 a. C) e informados que numa das cidades conquistadas pelo jovem "imperador" encontraram, como despojo de guerra, um baú ricamente adornado por pedras preciosas. Alexandre ouviu planos mirabolantes de seus soldados sobre o que fazer com a jóia. Quando perguntado o que colocaria ali, disse que a poesia de Homero. Senhor de sua época, Alexandre não perdeu a noção da importância da leitura, da literatura. Embora tivesse sido um grande estrategista bélico e político, possuía formação humanista, filosófica e teve como preceptor Aristóteles.

A leitura nos oferece a possibilidade de compartilhar sonhos, angústias, alegrias e, na maioria das vezes, forças para atravessar a existência. O escritor argentino Manguel (1997), conta-nos que na adolescência, quando trabalhava numa livraria em Buenos Aires, conheceu o escritor Jorge Luís Borges. Naquela época, Borges já estava quase cego e já não conseguia ler, o que o levou a convidar o adolescente para ler para ele. Manguel nos relata que à medida que lia para Borges, ele lhe chamava atenção para algumas palavras, para a beleza da construção poética, entre outros aspectos. O adolescente bebia com encantamento aquelas palavras tão antigas e tão novas para ele, tão plenas de sentido e que marcou sua formação, de certo modo sua passagem "madura" para a leitura.

Os livros possibilitam-nos recordar, armazenar informações e impressões vividas por nós ou pela humanidade e, a partir delas, criar nosso mundo real ou imaginário. A leitura, de um modo geral, já é significativa para o desenvolvimento humano. No entanto, a leitura da literatura promove uma dimensão de maior profundidade na compreensão do ser humano, conforme Bordini (1988):

Todos os livros favorecem a descoberta dos sentidos, mas são os literários que o fazem de modo mais abrangente. Enquanto os textos informativos atêm-se aos fatos particulares, a literatura dá conta da totalidade do real, pois, representando o particular, logra atingir uma significação mais ampla (...) A linguagem literária extrai dos processos históricos-político-sociais nela representados uma visão típica da existência humana. (p.13-14)
Nessa perspectiva, a literatura promove o encontro do homem consigo mesmo por meio da escrita do outro, ou como acrescenta Bloom (2001, p.24) que "para sermos capazes de ler sentimentos humanos descritos em linguagem humana precisamos ler como seres humanos". Assim, ao lermos a literatura, vamos nos humanizando, nos tornando mais plenos conosco mesmos e com as coisas da vida.

O encontro com a literatura dura a vida toda e, em cada fase, pode contribuir com diferentes aspectos de nossa formação. Por exemplo, na infância, as histórias infantis auxiliam o desenvolvimento da personalidade da criança, além de sugerir respostas para seus dilemas interiores de modo a enfrentar as perdas, superar os obstáculos e as decepções da vida. Para Bettelheim (1980, p.13), a história para enriquecer a vida da criança deve "estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações e, ao mesmo tempo, sugerir sugestões para os problemas que a perturbam".

Então o que queremos realmente dizer é que, no âmbito da leitura, existe a literatura que por meio das palavras, transforma idéias, sentimentos em arte. Leva o próprio ser humano a se humanizar à medida que se encontra como outros humanos impressos em livros.

Na década de 70, o Brasil vivia em plena ditadura militar, um período de embrutecimento e de um tecnicismo muito forte, esse momento causou a reação de um dos eméritos professores da USP, Antonio Candido (1972, p.4) sobre a função humanizadora da literatura que "pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial" e completa "ela [literatura] age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, - com altos e baixos, luzes e sombras". E ainda, reafirma o professor, a capacidade que o texto literário tem de suprir nossa necessidade de ficção e fantasia.

A obra literária tem a característica de ser polissêmica, de contribuir de forma ampla para formação do indivíduo, no entanto, isso não significa utilizá-la com a intenção de inculcar valores morais estritos, pois a formação se dá à medida que somos enlevados pela ficção, pela fantasia.

A literatura amplia a nossa compreensão de nós mesmos e depois do mundo que nos rodeia e uma vez "fisgados" por ela, dificilmente há volta. Impossível nos separarmos dela. Não queremos dizer que a leitura seja a única maneira de se ver o mundo, mas cremos ser uma das mais completas formas de apreensão do mundo.

Nesse sentido, o processo educacional não pode prescindir da literatura como uma das estratégias para levar o aluno à leitura, a apreciar as palavras, descobrir sua beleza, encontrar-se com outros mundos, pois ela faz parte da expressão humana e traz em si a sua força, sua essência.


Referências

Borges, Luís. Cuarto Congreso Mundial de Lectura. Buenos Aires, 1972.

Bloom, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Bettelheim, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

Manguel, Alberto. Uma história da leitura. Trad: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.