ALÉM DAS BIBLIOTECAS


CAÇADORES DE BONS EXEMPLOS

Acredito no ser humano e na sua capacidade de transformação. Utopia? Loucura? [...] E você? Qual a sua causa? Crianças, animais, idosos, jovens, educação, meio ambiente, saúde, comunidades ribeirinhas, dependentes químicos, famílias desestruturadas? Transformar a dor em amor? Não importa qual, mas tenha uma causa. Se cada um agir no plano com que se identifica em busca do bem, conseguiremos viver melhor. Qual a sua motivação para viver? O que você deixará para seus filhos? Bens materiais ou o bem que você fez?

Iara e Eduardo Xavier (2005, p. 197).

 

Em meio a matérias de gosto duvidoso que o programa Fantástico da TV Rede Globo leva ao ar a cada domingo, uma reportagem, à época, 15 de setembro de 2013, desperta o lado luminoso de muitos frente à atitude de um casal aparentemente comum, Iara e Eduardo Xavier. De classe média, vida profissional estável, a partir de 2008, alimentam em silêncio o sonho de partir em 2011 para uma empreitada incrível: caçar, literalmente, os brasileiros que fazem a diferença, ou seja, aqueles que desenvolvem ações em prol do próximo, não importa a natureza, o porte, o local e qualquer outro rótulo dos projetos.

Para tanto, pedem demissão dos respectivos empregos, vendem o único imóvel de que dispõem em Divinópolis (Minas Gerais) e se desfazem de todos os demais bens materiais. É o momento da partida por quatro anos (a princípio, dois no Brasil), em veículo personalizado com a identificação “caçadores de bons exemplos”, o qual se torna seu novo lar e escritório. Certos de que vão encontrar em todo o território nacional “diamantes” raros ou ocultos, como gesto simbólico, decidem partir de Diamantina, também MG.

Diante de questionamentos sobre o planejamento prévio, entre risos, eles mostram uma folha em branco. Sabem exatamente o que querem, mas estão predispostos a seguir os chamamentos do coração sem abrir mão de certos preceitos. Dentre eles: selecionar as ações a serem cadastradas longe da interferência da mídia de qualquer natureza, incluindo a internet. Nos 26 Estados e no Distrito Federal, o mesmo procedimento: Iara e Eduardo simplesmente chegam às cidades (capitais ou não) e puxam conversa com anônimos nas ruas ou em qualquer parte. Ao receberem indicação sobre alguém que trabalhe sistematicamente em auxílio do próximo, deslocam-se em busca desse alguém. Outro princípio: nenhum aviso prévio. Querem ver o que ocorre, sem maquilagem ou retoque. Buscam a verdade como ela é no dia a dia.

Livres das amarras de um roteiro predefinido ou rígido, sem qualquer vínculo político e religioso e sem patrocínio, o que provoca espanto por onde passam, Iara e Eduardo são taxados, com certa frequência, de “loucos maravilhosos” ou, simplesmente, “loucos.” São pessoas (a maioria, diga-se de passagem) que não atinam o quanto seria surpreendente se a loucura assumisse a lucidez de atos concretos em prol da humanidade. Retomando a questão do patrocínio, resistem até quando podem a não receber qualquer verba nem de particulares nem de organizações governamentais ou não. Nos últimos meses – afinal são quatro anos que se estendem entre 2011 até 1 de dezembro de 2014 – completamente sem recursos, aqui e acolá, como acontece em sua aparição no Programa da TV Globo, Caldeirão do [Luciano] Huck, acatam alguma doação em dinheiro. No livro intitulado “Caçadores de bons exemplos: em busca de brasileiros que fazem a diferença”, jogam “na cara” nosso egoísmo e nossa falta de compaixão diante do outro. E acrescentam:

[...] recebemos ajuda de todas as maneiras na estrada. Combustível, um abraço, banheiro limpo, mensagens de incentivo, cartão de papel-semente, amor, jantares, almoços, presentes, hospedagem, palavras carinhosas, dinheiro (sim, depois de muito tempo aprendemos a aceitar, por descobrirmos que às vezes o dinheiro é a única coisa que algumas pessoas têm), cama arrumada, alimento, sabonetes, um cafezinho, ajuda profissional, remédios, voluntariado e pão quentinho (p. 107).

O incrível é que o livro, narrado por Iara, embora conte toda a saga por eles vivenciada e descreva com intensidade muitos dos 1.150 projetos identificados ao longo de uma jornada de 225.807 km2, de Norte ao Sul do país ou do Oiapoque ao Chuí, é de uma leitura não linear e para lá de agradável. Aliás, em relação à expressão – do Oiapoque ao Chuí – Iara e Eduardo acrescentam que, ao pé da letra, ela não é mais realidade. Expedição em Roraima, ano 1998, atesta que o monte Caburaí (Uiramutã, Roraima) e não o rio Oiapoque (Amapá) é o verdadeiro extremo norte do Brasil. Também se diz que a barra do Chuí (Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul) e não mais o município de Chuí é o extremo sul. Detalhes à parte, o chegar ao Chuí é, para o leitor, como fora para Iara, segundo suas palavras literais: um doce respiro.

Sem dúvida, a publicação da Editora Leya, “Caçadores de bons exemplos...”, São Paulo, ano 2015, com 256 páginas, traz reflexão, autocrítica e uma carga de esperança para muita gente. Segundo relatos postados no site oficial do casal (https://www.caçadoresdebonsexemplos.com.br), sua intervenção devolve a vida a muita gente – suicidas em potencial, vítimas de depressão e de tristeza profunda, portadores de deficiências graves, sejam elas físicas ou d’alma. E o melhor: sem pregar “sermão”, sem condenar os que seguem passivos diante da vida e sem negar as dificuldades infindas vivenciadas.

Há de tudo dentre os projetos registrados na página eletrônica dos autores e em suas redes sociais, incluindo YouTube, facebook e instagram, como forma de estimular novas experiências mediante consulta a cada uma das histórias cadastradas. Há que se rememorar que o “[...] assistencialismo faz o bem em eventos pontuais. Projetos sociais fazem o bem constantemente. Negócios sociais constroem um mundo melhor [...]” (p. 133). Existem casos de pais que perderam filhos contra o câncer, outras enfermidades ou violência extrema. Em Manaus (Amazonas), por exemplo, o Instituto Alguém surge da dor de uma mãe, Carolina Varella, cuja filha de sete anos parte aos céus por conta de um câncer raro. Desde antes, a mulher transmuta sua dor em amor: assegura condições mínimas a famílias vulneráveis para que possam cuidar dos filhos enfermos em hospitais de referência.

E o que dizer dos Canarinhos da Amazônia? Em Boa Vista (Roraima), um coral representa a forma de libertação de crianças em linha de extrema pobreza. A Casa da Criança, graças à intervenção de uma arquiteta, transforma a estrutura das entidades em prol do bem de crianças e adolescentes num local lindo e aconchegante. O Projeto Terapia Comunitária precisa ser conhecido por todos. É fantástico (sem ser global!). No Piauí, dentre outras iniciativas, os dois caçadores registram a luta de Célio Luiz Barbosa com sua Fazenda da Paz, Teresina, para trazer à tona quem mergulhou no mar das drogas; em Esperantina, a AMARE, liderada por um alemão radicado no Piauí há 25 anos, Johannes Skorzak, é exemplo de transformação dos seres humanos via amor incondicional. E para quem sempre se queixa da imprensa que apregoa somente os malfeitos do homem, há uma série de gente divulgando boas notícias. É só conferir: TV Supren; a agência Boas Notícias; os sites Só Notícia Boa e Hypenesse; o coletivo Imagina; e assim vai...

As narrativas colecionadas, em sua diversidade inacreditável – ensino; saúde pública; saúde bucal; meio ambiente; esportes nas mais diferentes modalidades; artes (artesanato, desenho, pintura, dança, música, teatro, cinema); atendimento a órfãos, idosos, moradores de rua, deficientes; etc. etc. etc. demonstram que, “[...] apesar de vivermos às voltas com histórias lindas de superação, por trás delas sempre tem uma dor, uma tragédia social” (p. 69). Portanto, as ações relatadas enfatizam o sentimento profundo de que a esperança precisa viver em nossos corações. O livro realmente concebe a desconstrução de nosso pessimismo e de nossos preconceitos sobre violência, enfermidades, pobreza, dinheiro, profissões, status, vingança, dor e ódio. É simplesmente um hino de amor: “[...] vamos pedir que ajudem o próximo que está próximo e não o próximo que está longe” (p. 97), dizem os autores.

Fonte:

XAVIER, Iara; XAVIER, Eduardo. Caçadores de bons exemplos: em busca de brasileiros que fazem a diferença. São Paulo: Leya, 2015. 256 p.

 

 

 

 

 

 
 

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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”