LEITURAS E LEITORES


POESIA EM TEMPOS DE HOMENS PARTIDOS

Este ano, 2016, tem se revelado desafiador para que pensemos o Brasil, parece haver uma fermentação regressiva de posicionamentos e leis que tratam das questões sociais e educacionais. Existiria uma blindagem na compreensão desses aspectos? Aproxima-se uma tempestade? A impressão, às vezes, é que resistir a isso é quase impossível, pois o sol ou a calmaria estariam distantes.

 

Cada período histórico tem seus tempos difíceis. Onde encontrar diálogo: quando parte da sociedade parece hipnotizada, hibernante em posições contrárias ao social, ao diverso? Onde encontrar o diálogo: quando parecemos sós com nossas opiniões? Estaremos realmente sós, sem interlocução? Se buscarmos na literatura, em especial na poesia, encontraremos lirismo e resistência, sem obviedade, mas com a clarividência para compreender momentos intempestivos; tempos de crise e de identidade, desvelando ao leitor o mundo em ebulição, como é o caso de parte da poesia de Carlos Drummond de Andrade.

 

O poeta mineiro de Itabira tem uma poesia que trata de muitas temáticas como ele próprio definiu: desde o indivíduo retorcido, complexo passando pela família, pelos amigos, terra natal; pelo conhecimento amoroso até o choque social, como é o caso do livro A rosa do povo, obra escrita nos anos da Segunda Guerra Mundial e lançado em 1945. A obra traz, entre outras temáticas, a angústia, a percepção do dilaceramento humano, como é possível constatar nos versos iniciais de Nosso tempo:

 

Esse é tempo de partido,

tempo de homens partidos.

[...]

Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo

[...]

Calo-me, espero, decifro.

As coisas talvez melhorem.

[...]

 

O mundo não parece seguro, o homem está dilacerado, em busca de si mesmo, de compreender o que ele realmente é naquele contexto. Tempos obscuros, de segregação, anos de guerra, de exclusão social, de pouco valor à vida. Mas resistir é a única solução e o poeta convoca-nos a reagir, a lutar por um mundo melhor, mesmo que frágil, como em A Flor e Náusea:

 

[...]

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

 

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

[...]

 

Drummond usa duas imagens: a da fragilidade da flor e a dureza do asfalto. A fragilidade e a singeleza vencendo a força, a dureza do concreto: a dureza que estava no coração dos homens com a guerra, a dureza social, a desumanização, que só pode ser resgata com o próprio ser humano, com seus sentimentos mais puros.

 

Em Visão 1944, o poeta nos revela o mundo manchado de sangue pelas torturas e intolerância advindas da Guerra em contraposição a outro mundo que brota como as plantas aquáticas:

 

[...]

Meus olhos são pequenos para ver

o mundo que se esvai em sujo e sangue,

outro mundo que brota, qual nelumbo

— mas veem, pasmam, baixam deslumbrados

[...]

 

Mas até que o broto floresça, o clima é de incertezas que tornam a vida paralisante. Nesse contexto, Drummond pondera em O medo:

 

[...]

Em verdade temos medo

Nascemos no escuro.

As existências são poucas;

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.

[...]

 

Se o medo não pode ser evitado, pode-se enfrentá-lo até mesmo quando tudo parece estar perdido, como sugere o poema Consolo na Praia:

 

[...]

Vamos, não chores.

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu

[...]

 

Autores singulares como Drummond têm uma poesia atemporal, pois falam com os homens de todas as épocas e seus dilemas sociais e existenciais. Por isso, não se pode simplesmente condicionar os excertos anteriores a uma interpretação fechada, restritiva. A poesia é plurissignificativa e aberta, portanto, dialoga conosco sobre o presente, tanto da nossa trajetória individual quanto coletiva; dialoga com aquilo que consideramos fundamental para o ser humano livre, pensante e cidadão.

 

*Obs: o título é uma referência ao verso do poema Nosso tempo de Drummond.

 

Referências

 

Andrade, Carlos Drummond. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1997.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.